Agronegócio
Valor Econômico

A blindagem estratégica do agronegócio brasileiro Em um mercado cada vez mais volátil e regulado, a expertise jurídica não deve ser vista como custo, mas como investimento estratégico indispensável

O agronegócio brasileiro está exposto a riscos que vêm de fora. Em um cenário de tensões geopolíticas, reconfigurações de acordos comerciais, rupturas nas cadeias de suprimentos e a emergência de novas exigências socioambientais, essa vulnerabilidade se intensificou.

A experiência do “tarifaço” americano sobre produtos brasileiros ilustra como a falta de proteção contratual fragiliza cadeias de valor inteiras. A imprevisibilidade internacional exige contratos bem estruturados, que funcionem como a primeira linha de defesa. Não basta ter um acordo; é preciso que esteja desenhado para prever o imprevisível e, acima de tudo, que as partes conheçam profundamente o arcabouço regulatório do país importador antes de assinar qualquer documento.

Há distinção importante entre a contestação de um ato soberano – algo que pertence à arena entre Estados, como na Organização Mundial do Comércio (OMC) – e a forma como esses atos impactam os contratos privados. Um tribunal brasileiro não tem o poder de anular uma tarifa imposta por outro país. O papel do direito privado é outro: atuar para redistribuir os efeitos desses choques, buscando reequilibrar a relação contratual entre as partes e salvaguardar os interesses financeiros e operacionais do exportador.

Além dos “tarifaços” clássicos, o agronegócio enfrenta nova onda de “choques regulatórios” ligados a questões de sustentabilidade e ESG (ambiental, social e governança). Novas exigências ambientais, como limites para pegada de carbono, ou sociais, como padrões trabalhistas e de rastreabilidade, podem gerar impactos tão ou mais severos que uma tarifa.

Restrições a defensivos agrícolas específicos ou a determinadas práticas de produção (como o desmatamento) em mercados-alvo afetam diretamente a elegibilidade dos produtos, exigindo uma adaptação constante e um olhar atento à conformidade para manter a competitividade e o acesso a mercados premium.

Em um cenário de incertezas crescentes, o contrato deixa de ser mero formalismo e se torna o principal escudo do agronegócio. A solução reside na gestão proativa de riscos, com cláusulas gerais estratégicas

As cláusulas de change in law/regulatory change permitem que alterações legislativas/regulatórias (sejam tarifas, embargos sanitários, novas exigências técnicas, ou até mesmo normas ESG) viabilizem renegociações, adaptando o contrato à nova realidade sem a necessidade de um litígio imediato; já, as cláusulas de hardship, ligadas à teoria da imprevisão, estabelecem critérios objetivos para caracterizar uma “dificuldade anormal” e preveem a reabertura para negociações, preservando o vínculo comercial; e, por sua vez, os tariff/regulatory triggers estabelecem ajustes automáticos de preço ou a renegociação, caso uma tarifa ou exigência regulatória atinja um patamar predefinido, oferecendo um mecanismo claro e rápido de ajuste de custos.

Além das cláusulas contratuais, instrumentos financeiros como seguros de crédito à exportação, hedging cambial e seguros específicos para riscos políticos ou comerciais desempenham papel determinante na mitigação de riscos. Esses mecanismos complementam as estratégias contratuais, oferecendo uma camada adicional de proteção contra a volatilidade do mercado global e garantindo o fluxo de caixa do exportador.

Ferramentas como blockchain podem ser utilizadas para rastreabilidade de produtos, garantindo transparência em toda a cadeia de valor. A inteligência artificial, por sua vez, permite a análise preditiva de dados de mercado e regulatórios facilitando a adaptação rápida a novos cenários.

Mesmo com contratos impecáveis e estratégias preventivas, problemas podem surgir. E é nesse momento que se percebe que o “pré-contencioso” não é mera formalidade. Ele é a organização estratégica da futura disputa e uma forma eficaz de proteger a reputação comercial e as relações de longo prazo.

Para o sucesso na área do litígio, é essencial manter registro dos impactos dos atos soberanos (linha do tempo, impacto financeiro do evento e demonstração do pass-through tarifário). Não se pode esquecer que conciliação e mediação são alternativas eficazes e tendem a preservar os relacionamentos comerciais. Contudo, se inviáveis ou infrutíferas, tutelas de urgência (liminares processuais) podem proteger contratos e operações.

Os “tarifaços” e choques regulatórios são uma realidade constante no comércio global. Para o agronegócio brasileiro, a capacidade de resposta a esses desafios não se limita à negociação política. Reside, principalmente, na inteligência jurídica: construção de contratos robustos desde o início, que prevejam múltiplos cenários de risco (de tarifas a exigências ESG), na gestão proativa do pré-contencioso e na utilização estratégica e bem-informada das ferramentas legais disponíveis.

Em um mercado cada vez mais volátil e regulado, a expertise jurídica não deve ser vista como custo, mas como investimento estratégico indispensável. Ela permite que empresas naveguem com segurança pelas incertezas do comércio internacional, consolidando sua posição, protegendo investimentos e abrindo novos horizontes. Integrar a gestão de risco tarifário e regulatório nos padrões contratuais, aliada a uma governança documental eficiente, é o caminho para transformar volatilidade em previsibilidade, garantindo a competitividade do agronegócio brasileiro no cenário global.

https://valor.globo.com/legislacao/coluna/a-blindagem-estrategica-do-agronegocio-brasileiro.ghtml

Fernanda Kikuti Ramalho é advogada do Castro Barros Advogados, pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil