Análise monocrática da repercussão geral, prevista pelo regimento do STF
Previsto na Constituição, o recurso extraordinário (RE) é o meio pelo qual o jurisdicionado questiona as decisões proferidas pelos Tribunais Estaduais e Federais, levando ao Supremo Tribunal Federal (STF) a análise sobre sua constitucionalidade.
As hipóteses de cabimento do RE estão previstas no artigo 102, inciso III, da Constituição [1] e, dentre os requisitos de admissibilidade desse recurso, merece especial destaque a repercussão geral, que foi introduzida no texto constitucional pela EC 45/2004, popularmente conhecida como reforma do Judiciário.
Esse importante requisito de admissibilidade, segundo apregoa o próprio STF [2]:
“Permite uniformizar a interpretação constitucional e vincular sua aplicação às instâncias inferiores, evitando que a Corte decida múltiplos casos idênticos sobre a mesma questão constitucional. Além disso, garante a segurança jurídica, pois as decisões de todas as instâncias do Judiciário sobre determinada matéria passam a ser uniformes.”
Trata-se, em verdade, de um dos principais mecanismos utilizados pela Suprema Corte brasileira para desafogar seu estoque processual e, diferentemente do que muitos acreditam, esse filtro não foi uma inovação. Isso porque, o parágrafo 3º do artigo 102[3], inserido na Carta Constitucional pela celebrada EC n. 45/2004, é primo da chamada arguição de relevância da questão federal, introduzida no Regimento Interno do Supremo por meio da Emenda Regimental nº 3, ainda nos idos de 1975.
Sem aprofundar esse antecedente histórico, é necessário apenas registrar que a ligação sanguínea entre os dois institutos demonstra que a tentativa de desafogar o Supremo não nasceu com a reforma do Judiciário e, tão pouco, foi encerrada com ela. Essa empreitada, em verdade, se repete ano após ano, ou melhor, alteração normativa após alteração normativa.
Nesse interim, o STF, a pretexto de conferir mais transparência e rapidez a tramitação dos casos sob sua jurisdição, procedeu em 2020 diversas alterações regimentais por meio da Emenda Regimental nº 54, de 1º de julho de 2020. Dentre as propostas aprovadas, destaca-se o artigo 326 e seus parágrafos.
O já mencionado parágrafo 3º do artigo 102 da Constituição determina que “no recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.
Em outras palavras, significa dizer que, a recusa da repercussão geral da questão trazida pela parte deve ser realizada por um quórum “super qualificado” composto por dois terços dos membros do tribunal. Na prática, estar-se a falar de oito dos onze ministros que fazem parte da composição do tribunal. Para se ter ideia do quão exigente o legislador constitucional foi nesse regramento, isso representa um quórum mais amplo que o necessário para declarar a inconstitucionalidade de norma, que é de maioria absoluta [4].
Estabelecido esse antecedente, é possível passar a análise da alteração regimental que acrescentou ao artigo 326 o parágrafo 1º que diz: “Poderá o relator negar repercussão geral com eficácia apenas para o caso concreto”.
Na prática, o que se verifica é a criação de uma permissão procedimental para a declaração monocrática da ausência de repercussão geral que, diferentemente da regra constitucional, somente terá validade para o caso concreto objeto da análise. Tal permissão parece não guardar congruência com o comando constitucional do mencionado parágrafo 3º do artigo 102 e merece reflexão mais aprofundada.
Como cediço, o comando constitucional determina que a análise da repercussão geral seja realizada por órgão colegiado. Até então, não havia grandes discussões ou dúvidas quanto a isso. Na contramão de tal requisito, o Supremo entregou ao relator o poder de analisar a matéria de forma monocrática, ressalvando, contudo, que essa decisão tem efeito apenas inter partes, ou seja, para o caso concreto no qual foi proferida.
Trata-se da normatização, por meio de regimento interno, de mais um filtro processual que visa reduzir a quantidade de recursos extraordinários aptos a serem julgados. E isso não é uma conclusão particular, mas um posicionamento exarado pelo próprio tribunal, como será demonstrado mais adiante.
Se por um lado é compreensível que a Suprema Corte busque meios de desafogar os gabinetes com o honroso objetivo de proporcionar que sua jurisdição seja mais eficiente, relevante e justa, por outro, tal desiderato não pode se convolar na criação de mecanismos que colidam com os princípios e garantias constitucionais.
Nesse sentido, MENDES (2020) destaca de forma muito percuciente a necessidade de que os regramentos contidos nos regimentos internos dos tribunais respeitem “as regras de processo e as garantias processuais das partes, consoante prevê o artigo 96, I, ‘a’, da CF/88”.
O Supremo, certamente a par do apuro constitucional que o texto do referido dispositivo representa e, muito provavelmente, na tentativa compatibilizar tal regra com a Carta Magna, inseriu nos parágrafos seguintes do artigo 326 a possibilidade de interposição de recurso contra a decisão unipessoal do relator, que deverá ser analisado pelo Plenário:
“Artigo 326. (…)
§2º Se houver recurso, a decisão do relator de restringir a eficácia da ausência de repercussão geral ao caso concreto deverá ser confirmada por dois terços dos ministros para prevalecer.
§3º Caso a proposta do relator não seja confirmada por dois terços dos ministros, o feito será redistribuído, na forma do artigo 324, §5º, deste Regimento Interno, sem que isso implique reconhecimento automático da repercussão geral da questão constitucional discutida no caso.
§4º Na hipótese do §3º, o novo relator sorteado prosseguirá no exame de admissibilidade do recurso, na forma dos artigos 323 e 324 deste Regimento Interno.”
Nesse ponto, é oportuno colacionar trecho do voto paradigmático do ministro Alexandre de Moraes [5], principal entusiasta da inovação regimental, proferido justamente em recurso interposto contra decisão monocrática que afastou a repercussão geral suscitada pela parte. Nele, o ministro advoga em favor da alteração regimental, pontuando sua utilidade e pertinência constitucional, com supedaneo na previsão dos parágrafos 2º ao 4º do novo dispositivo. Anotem-se os esclarecimentos realizados já na ementa do julgado:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. REPERCUSSÃO GERAL. REJEIÇÃO PELO RELATOR, COM EFICÁCIA APENAS PARA O CASO CONCRETO. REGIMENTO INTERNO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ARTIGO 326, §§1º A 4º, COM A REDAÇÃO DADA PELA EMENDA REGIMENTAL 54, DE 1º DE JULHO DE 2020.
[…]
4. Esta sistematização alinha-se ao §3º do artigo 102 da Constituição e ao artigo 1.035 do Código de Processo Civil de 2015. Fiel aos contornos e às exigências do instituto da repercussão geral, trata-se de mais um meio para que o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL examine a relevância das questões suscitadas no RE, ao lado do já consolidado Plenário Virtual.
5. Apesar de todos os notáveis avanços no sentido da redução da entrada de processos no SUPREMO, fruto de uma estratégia voltada precipuamente às questões repetitivas, a distribuição de recursos persiste elevada (21.938, no ano de 2019). Além disso, a observação atenta das controvérsias retratadas nos milhares de decisões proferidas pelo SUPREMO sinaliza a predominância de assuntos destituídos de repercussão geral.
6. Isso tudo evidencia a conveniência de um método expedito e eficaz para a negativa de seguimento de tais recursos — que, a despeito da inexpressividade dos temas suscitados, não são contidos pelo filtro hoje existente, pensado para macrolides.
7. Sem a pretensão de formar precedentes abrangentes e vinculantes — uma característica do Plenário Virtual —, a sistemática introduzida pela Emenda Regimental 54/2020 objetiva uma ágil rejeição dos recursos desprovidos de repercussão geral, por meio de uma fundamentação concisa do Relator.
8. Esta solução precede a análise do extenso repertório de pressupostos recursais de admissibilidade, que, portanto, só será realizada caso o recurso ultrapasse o crivo de relevância definido nos novos parágrafos do artigo 326 do RISTF.
[…]”.
É perceptível que o ministro Alexandre de Moraes exerceu o papel de verdadeiro porta-voz do Supremo, incluindo extenso obter dictum ao voto para defender a alteração regimental. Em seu discurso, dois fatos ficam bem claros: primeiro, de que a inserção do parágrafo primeiro do artigo 326 tem o objetivo de reduzir o passivo processual do Supremo e, segundo, que a Corte não ignorou o requisito constitucionalmente previsto para a rejeição da repercussão geral, e a finalidade dos parágrafos 2º ao 4º ao novo dispositivo regimental é exatamente demonstrar tal desiderato.
O referido julgamento foi realizado pelo Plenário em setembro de 2020 e contou com o voto divergente e vencido do ministro Marco Aurélio Melo (atualmente aposentado). Nesse, e em todos os demais julgamentos idênticos realizados pelo Plenário, o referido ministro ficou vencido, sempre juntado ao acórdão brevíssimo voto com a observação de que “Surge a impropriedade de ter-se a atuação individual negando a repercussão maior do tema, considerado o teor do artigo 102, §3º, da Constituição Federal, segundo o qual a recusa exige manifestação de dois terços dos membros deste Tribunal”.
O que se vê é que a possibilidade de negativa de repercussão geral por meio de decisão monocrática, deu aos ministros do Supremo uma carta branca para utilizar mais um filtro processual na análise dos Recursos Extraordinários.
Na prática, a regra contida no parágrafo 1º do artigo 326 RISTF parece ferir o comando constitucional do parágrafo 3º do artigo 102 e, acima de tudo, revela verdadeira atividade legislativa realizada pelos membros da Suprema Corte.
Apenas para se ter um panorama da real utilização de tal prerogativa regimental pelos integrantes do tribunal, registre-se que uma pesquisa jurisprudencial atual [6] revelou apenas 52 resultados de acórdãos para os parâmetros “repercussão geral” somado ao termo “artigo 326”. Praticamente a totalidade dos julgados, é de relatoria do ministro Alexandre de Moraes e foi objeto de análise pelo Plenário, tendo ficado vencido o ministro Marco Aurélio.
O número não parece expressivo quando comparado as mais de 80 mil decisões colegiadas proferidas pela Corte somente em 2022 [7]. No entanto, é necessário cautela antes de produzir uma conclusão quanto aos números.
Deixando os números de lado, não se olvida a legitimidade da tentativa do STF em desafogar seu acervo e prestigiar a verdadeira vocação constitucional da Corte. Tal anseio, no entanto, não pode atropelar princípios e garantias constitucionais.
Nesse sentido, ficam, por fim, algumas questões para reflexão futura, tais como: 1) a possibilidade de interposição de recurso contra a decisão unipessoal do relator que afasta a repercussão geral do caso concreto é suficiente para proteger/atender ao requisito constitucional previsto no do parágrafo 3º do artigo 102 da Constituição? 2) qual será a consequência a longo prazo dessa alteração para a jurisprudência do Supremo e dos demais tribunais brasileiros? 3) haverá desencontro entre o entendimento dos ministros da Corte Suprema sobre a existência de repercussão geral de determinada matéria?
Para finalizar, um questionamento que parece ter o contorno ainda mais relevante que os anteriores, 4) ainda que tal decisão monocrática não possua efeito vinculante, essas manifestações servirão de embasamento para obstar a admissão de recursos extraordinários junto aos tribunais brasileiros? E, caso isso ocorra, qual será o recurso cabível contra tal decisão (considerando o disposto nos artigos 1.030 e 1.031 do Código de Processo Civil)?
Não resta alternativa ao jurisdicionado senão aguardar que o tempo sinalize sobre a efetividade e as consequências que tal alteração regimental produzirá.
https://www.conjur.com.br/2022-out-16/danubia-costa-analise-monocratica-repercussao-geral
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 21 Jul. 2022.
_______. Código de Processo Civil, 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 20 Jul. 2022.
_______. Corte Aberta. Brasília: STF, 2022. Disponível em: < https://transparencia.stf.jus.br/extensions/plenario_virtual/plenario_virtual.html>. Acesso em: 02 Ago. 2022.
_______. Mudanças no Regimento Interno enfatizam atuação colegiada do STF. Brasília: STF, 2020. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=446754&ori=1>. Acesso em: 20 Jul. 2022.
OLIVEIRA, Paulo Mendes de. Regimentos Internos como fonte de normas processuais. JusPodivm Editora, 2020. p. 80.
CAMPOS, Luciana Dias de Almeida. O antecedente histórico da repercussão geral no Brasil: a arguição de relevância da questão federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, nº 3320, 3 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22253. Acesso em: 20 Jul. 2022.
REGO, Frederico Montedonio. Repercussão geral: uma releitura do direito vigente. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 222
[1] Artigo 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
(…)
III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
- a) contrariar dispositivo desta Constituição;
- b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;
- c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.
- d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.
[2] IN: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=393561
[3] Artigo 102.
(…)
- 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.
[4] Nos termos do artigo 97 da Constituição Federal, “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”. No caso do Supremo, esse número representa seis votos dentre os onze ministros que fazem parte da Corte.
[5] Ag.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.273.640 DISTRITO FEDERAL, Plenário 08.09.2020, relator: Alexandre de Moraes
[6] Pesquisa realizada no site do Supremo Tribunal Federal em 02.08.2022 utilizando os parâmetros “repercussão geral” e “artigo 326”, com a delimitação de data a partir de 1º de julho de 20202 (data da Emenda Regimental n. 54).
[7] Dado revelado pelo Programa Corte Aberta do Supremo Tribunal Federal.
Danúbia Souto de Faria Costa é coordenadora do Castro Barros Advogados em Brasília, advogada, pós-graduada em Direito pelo Instituto dos Magistrados do Distrito Federal (Imag) e especialização (LLM) em curso em Processo e Recursos no Tribunais pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).