O haircut não pressupõe renda tributável para as empresas em recuperação judicial
Um plano de recuperação judicial sempre envolve uma intensa etapa de renegociação de dívidas, com a consequente redução de passivos e obrigações. Esta renegociação, no entendimento das autoridades fiscais, implica diminuição do nível de endividamento das empresas, que, por sua natureza, representaria um perdão de dívida – designado normalmente como haircut — e corresponderia a um ganho tributável pelo Imposto de Renda (IR) e pela Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), à alíquota conjunta de 34%.
Ou seja: após grande trabalho de convencimento de credores e fornecedores em aceitarem reduções significativas dos valores dos seus créditos, além de as dívidas tributárias serem excluídas do plano de recuperação judicial, nos termos do que preveem os artigos 6º, parágrafo sétimo, da Lei de Recuperação Judicial e 187 do Código Tributário Nacional, o Fisco ainda alega que, sobre esse suposto ganho, o devedor em recuperação judicial deve pagar IR e CSLL.
Esse posicionamento do Fisco causa grande surpresa, na medida em que não é razoável que a eliminação de passivos e obrigações de um lado, obtida em consonância com os propósitos fundamentais para o sucesso de um plano de recuperação judicial, representem, de outro, um ganho supostamente tributável sem que qualquer liquidez, ou capacidade financeira de pagamentos tenha sido propiciada à empresa devedora, quando, na verdade, reflete patrimonialmente, apenas, uma diminuição no nível de endividamento da empresa recuperanda.
Não por outra razão, a legislação americana, em seu Internal Revenue Code, assegura a exclusão desses supostos ganhos da base tributável do Imposto de Renda americano, quando os contribuintes estão sujeitos ao Chapter 11 do Bankruptcy Code, que regula o procedimento de empresas em recuperação judicial nos EUA.
Diversamente do que acontece nos EUA e em outros países, não há, no Brasil, uma norma que expressamente exclua esses ganhos da tributação pelo IR e CSLL. No entanto, apesar de inexistir uma previsão expressa excludente, essa tributação não é razoável juridicamente, viola o conceito constitucional e legal de renda e o princípio da capacidade contributiva.
Não é razoável porque, se de um lado temos o crédito tributário com os seus privilégios e sua inegável importância para a geração de recursos para a saúde, educação, segurança, por exemplo, de outro temos objetivos e princípios igualmente relevantes a serem observados em uma recuperação judicial, e que constam no artigo 47 da Lei de Recuperação Judicial (Nova Lei de Falências), tais como a manutenção da fonte produtora, dos empregos dos trabalhadores, dos interesses dos credores, da preservação da empresa, do cumprimento de sua função social, estímulo à atividade econômica, para citar os mais importantes.
Quanto ao conceito de renda, a doutrina que entende pela existência de um conceito constitucional de renda defende que o núcleo constitucional desse conceito pressupõe um acréscimo patrimonial que represente uma riqueza nova. Ou seja: algo que sempre será acrescido a uma situação patrimonial preexistente. O Código Tributário Nacional, em seu artigo 43, define renda como a “aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de um acréscimo patrimonial”.
A doutrina já teve a oportunidade de muito estudar esse conceito ao longo dos anos e definir que a disponibilidade econômica consiste em disponibilidade financeira/efetiva, ao passo que a disponibilidade jurídica corresponde àquela que representa um direito exigível pelo contribuinte, passível, portanto, de tornar-se efetiva e disponível economicamente. Por exemplo, o preço recebido com a venda de um bem estará disponível economicamente tão logo recebido; se nessa mesma venda for estipulado um prazo de pagamento de 30 dias, apesar do direito já existente com a venda, este apenas estará disponível juridicamente a partir do vencimento do prazo para pagamento do preço, pois é nesse momento que ele se tornará exigível, podendo, por conseguinte, legitimamente representar um acréscimo patrimonial ao contribuinte.
Em um segundo momento, a doutrina evoluiu e passou a exigir mais claramente que essa renda se mostre disponível econômica ou juridicamente, mas em caráter definitivo – portanto, realizada -, o que afastaria, por exemplo, a tributação, pelo IR e pela CSLL, de meras expectativas de renda, ou oscilações e mutações patrimoniais temporárias que não representassem um acréscimo patrimonial definitivo para o contribuinte.
Mais recentemente, a partir de uma maior aproximação e diálogo entre direito tributário e contabilidade, com os IFRS e CPCS, já se identifica parte da doutrina a afirmar que os acréscimos econômicos que decorram de mera prática ou sistemática contábil, mas que não representem um acréscimo patrimonial definitivo e, mais importante, uma renda nova, não legitimam a incidência do IR e da CSLL.
À vista dessas interpretações, torna-se inquestionável o fato de que os supostos ganhos decorrentes do haircut atribuído às dívidas mantidas por credores e fornecedores da empresa recuperanda não devem submeter-se à tributação pelo IR e CSLL, porque não representam a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica de um acréscimo patrimonial novo, de uma renda nova.
Já no que se refere à capacidade contributiva, trata-se de um princípio constitucional que funciona como um limitador ao exercício da competência impositiva da União (neste caso), a determinar que a tributação apenas se dê de forma legítima e constitucional se estiver em observância a um critério de gradação que respeite a capacidade econômica de cada do contribuinte.
Indispensável, portanto, que a capacidade econômica seja compreendida em sua acepção subjetiva, com o reconhecimento da necessidade de uma individualização da incidência para considerar as especificidades de um contribuinte nas circunstâncias em que ele se encontre.
A petição inicial de um pedido de recuperação judicial, de acordo com o artigo 51 da nova Lei de Falências, deve apresentar as causas concretas da situação patrimonial e as razões para a crise econômico-financeira do devedor. Além disso, deve juntar: demonstrações financeiras dos últimos três anos e exercício corrente, demonstração de resultados acumulados, demonstração de resultados do exercício, balanço patrimonial, relatório de fluxo de caixa e sua projeção. Já o artigo 53 da mesma lei prevê a necessidade de preparação e avaliação de um laudo econômico-financeiro de bens e ativos e de apresentação de um plano que demonstre a viabilidade econômica da empresa em recuperação.
Ora, o que é isso senão a aferição da capacidade econômica de pagamentos de uma empresa de fazer face às suas distintas obrigações, inclusive as de natureza tributária, eis que parte do conjunto de obrigações regulares que se impõem ao desenvolvimento de qualquer atividade empresarial?
A capacidade de pagamento de suas obrigações, delimitada como a necessária e suficiente à existência de uma empresa em recuperação judicial, e, mais importante, à sua viabilidade econômica, como requer a Lei de Recuperação Judicial, naturalmente pressupõe, como razão de sua existência, a capacidade contributiva do contribuinte de honrar as obrigações tributárias, que inegavelmente integram esse conjunto geral de obrigações a que empresa recuperanda, o juiz universal da recuperação e o administrador judicial devem observar.
Da mesma forma que existe um “mínimo existencial”, por exemplo, para as pessoas físicas, deve haver “um mínimo para a sobrevivência empresarial” a ser observado em relação às empresas em recuperação judicial.
Com a recuperação judicial, o juiz da recuperação, em conjunto com o administrador judicial e a própria empresa, estabelecem a capacidade econômica mínima de pagamentos da devedora, para assim cumprir com o seu plano de viabilidade econômica, o que certamente não admite o irrazoável pagamento de tributos sobre valores que não representem uma renda nova, sob pena de violação à sua capacidade contributiva e ao conceito de renda. Pois o que se observa na prática, ao contrário, é o reconhecimento, pelo juiz universal da recuperação judicial, da “incapacidade contributiva” da empresa recuperanda que lhe permita pagar IR e CSLL sobre esses supostos ganhos do perdão – do haircut -, sem comprometera observância dos princípios que regem a recuperação e que estão contidos dentre os objetivos desse instituto.
Ressalte-se, por fim, que esse entendimento não se aplica às hipóteses em que despesas foram incorridas no passado e produziram efeitos fiscais, com a consequente dedução para fins de apuração do Imposto de Renda e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. Isto porque, na medida em que haja um perdão da dívida que anteriormente gerou despesas e dedutibilidade, a diminuição do respectivo endividamento deve, naturalmente, impor a reversão dos efeitos de redução da base tributável.
*André Gomes de Oliveira, sócio sênior do Castro Barros Advogados