STJ e o mercado secundário de crédito
Espera-se que a decisão da 3ª Turma do STJ contribua para o desenvolvimento ainda maior desse mercado
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), recentemente, deu mais um importante passo para impulsionar o mercado de crédito, ao julgar o RESp 1.984.424/SP, leading case no qual tivemos a oportunidade de representar a recorrente, adquirente de uma Cédula de Crédito Bancário (CCB) e sucessora do credor originário nos autos da execução ajuizada para a cobrança da dívida.
O que torna esse julgamento especialmente relevante é que a aquisição da CCB se deu por cessão civil e a cessionária não é uma instituição financeira e tampouco a ela equiparável por lei.
Espera-se que a decisão da 3ª Turma do STJ contribua para o desenvolvimento ainda maior desse mercado
O tribunal local entendeu que, justamente por tais motivos, a cessionária estaria sujeita aos limites da Lei da Usura. Ademais, a autorização concedida pelo artigo 29, parágrafo 1º, da Lei nº 10.931/2004, para cobrança de “juros e demais encargos na forma prevista na cédula”, somente valeria nos casos de endosso em preto do título.
A 3ª Turma do STJ deu, por unanimidade, provimento integral ao recurso especial para reformar tal entendimento. A Corte destacou que, na forma dos artigos 286 e 287 do Código Civil, todo crédito é passível de cessão, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei ou a convenção com o devedor (o que não era o caso), e que a sua cessão, salvo disposição em contrário (inexistente na hipótese então em julgamento), abrange todos os acessórios.
E apesar de distinguir, com apuro técnico, a cessão civil do endosso, entendeu que, uma vez transmitida a CCB por cessão civil, a única diferença é que não a acompanharão os efeitos típicos dos títulos cambiais, como por exemplo a autonomia das obrigações e a inoponibilidade das exceções pessoais aos terceiros de boa-fé.
Valendo-se ainda do quanto decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no RE 631.537, no sentido de que a cessão de crédito oriundo de precatório alimentar não altera a sua natureza “independentemente das qualidades normativas do cessionário e da forma como este veio a assumir a condição de titular”, o STJ concluiu que o cessionário de uma CCB tem “o direito de cobrar os juros e demais encargos da dívida na forma originalmente pactuada, ainda que não seja instituição financeira ou entidade a ela equiparada”.
É bem verdade que, em 2019, por ocasião do julgamento do REsp 1.634.958/SP, a 4ª Turma do STJ, atenta à natureza das atividades dos Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios (FIDCs), que envolve (ou pode envolver) a captação de poupança popular mediante subscrição de cotas, os havia equiparado a instituições financeiras e, com isso, autorizado que tais fundos cobrassem os encargos previstos nas CCBs que adquirissem no mercado secundário.
Todavia, essa decisão recente, também do STJ, vai além: deixa claro que, independentemente das suas características, o cessionário de uma CCB, e não apenas o seu endossatário, pode exigir do devedor os encargos previstos no título.
Aliás, não apenas o cessionário, mas também aquele “que a recebeu por outra forma” que não o endosso, na medida em que o precedente cita a cessão civil como mero exemplo de forma de transferência do crédito. Ou seja, em verdade, toda e qualquer espécie de sucessão, desde que não houvesse ressalva em contrário a respeito dos encargos previstos na CCB, estaria amparada nessa relevante decisão do STJ.
Nesse contexto, correto o ministro Luis Felipe Salomão ao identificar, no voto condutor do REsp 1.634.958/SP, um movimento do direito privado de objetificação do crédito. Esse movimento, que já era perceptível a partir do artigo 29, parágrafo 1º, da Lei nº 10.931/2004, ficou mais evidente com a decisão do STF mencionada acima e com a reforma da Lei nº 11.101/2005, que resultou na inclusão do parágrafo 5º no seu artigo 83, segundo o qual “para os fins do disposto nesta lei, os créditos cedidos a qualquer título manterão sua natureza e classificação”, e se acentuou com essa recente decisão do STJ.
Vale o registro de que a tentativa de frear esse movimento resultará em inegável enriquecimento sem causa do devedor, vedado pelo artigo 884 do Código Civil.
Espera-se, assim, que a decisão do STJ contribua para o desenvolvimento ainda maior do mercado secundário de crédito, permitindo a criação de estruturas de investimentos mais ágeis e menos custosas do que a constituição de FIDCs (estruturas complexas e sujeitas à regulação pela Comissão de Valores Mobiliários), mantendo, contudo, as mesmas prerrogativas no tocante aos encargos do crédito adquirido.
Apesar de o precedente não ter força vinculante, posto não ter sido proferido em uma das hipóteses do artigo 927, III, do Código de Processo Civil, a expectativa é a de que ele seja seguido pelos tribunais inferiores, até mesmo em razão da recente edição, pelo Conselho Nacional de Justiça, da Recomendação nº 134, de 9 de setembro, cujo artigo 4º recomenda “aos magistrados que contribuam com o bom funcionamento do sistema de precedentes legalmente estabelecido, zelando pela uniformização das soluções dadas às questões controversas e observando e fazendo observar as teses fixadas pelos tribunais superiores (…)”.
Resta ver como os tribunais estaduais se comportarão ao se deparar com a discussão, cabendo ao STJ, de toda a forma, no desempenho da sua função constitucional de guardião da interpretação da legislação federal, zelar pela segurança jurídica e observância de suas decisões.
Rodrigo Gonçalves Lima de Mattos e Alexandre Catramby são sócios da área de contencioso e arbitragem do Castro Barros Advogados.
https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2022/11/09/stj-e-o-mercado-secundario-de-credito.ghtml