Ação contra BHP deve ser mais abrangente do que acordos feitos no Brasil, dizem especialistas
O que pode acontecer, eventualmente, é alguma família que já foi indenizada no Brasil não conseguir reparação no exterior
A ação coletiva movida no Reino Unido contra a BHP pelas vítimas do rompimento da barragem da Samarco em Mariana, em novembro de 2015, parece, segundo especialistas, muito mais abrangente do que os acordos feitos no Brasil para reparar os danos causados. Além disso, não há interferência da Justiça local, na decisão do exterior e vice-versa.
Para juristas, advogados e professores de Direito, nada impediria o curso dessa ação coletiva no exterior e eventuais indenizações, pleiteadas em mais de 5 bilhões de libras, caso a Corte entenda pela condenação da empresa inglesa. Apenas para os familiares das vítimas que já receberam valores no Brasil pode ser que exista algum impedimento.
A BHP é uma das acionistas da Samarco, produtora de pelotas de minério de ferro controlada em partes iguais (50%) pela BHP Brasil e pela brasileira Vale.
Como é uma companhia inglesa, a ação foi movida agora no exterior pelo escritório PGMBM, especialista em ações coletivas e que representa as vítimas, em parceria com o escritório brasileiro Castro Barros Advogados. A ação foi movida em nome de mais de 200 mil vítimas. Entre elas, famílias de vítimas fatais, membros da comunidade indígena Krenak, 25 governos municipais brasileiros, seis autarquias, 531 empresas e 14 instituições religiosas.
O rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, vai completar sete anos no dia 5 de novembro. Ele resultou em 19 mortes. A lama chegou ao rio Doce, cuja bacia hidrográfica abrange 230 municípios dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, muitos dos quais abastecem sua população com a água do rio.
Segundo Carlos Portugal Gouvêa, professor de Direito Comercial da USP e sócio do PGLaw, a legislação inglesa permite que se movam ações coletivas contra empresas localizadas na Inglaterra, por crimes ambientais, e que não foram responsabilizadas de forma adequada na Justiça local, onde ocorreu o acidente, no caso o Brasil.
“A Justiça inglesa tem grande experiência em ações coletivas como essa e se ficar demonstrado que alguns agentes acabaram não sendo indenizados ou foram indenizados de forma insuficiente, pode haver a reparação tanto de órgãos estatais, quanto de prefeituras, empresas, instituições religiosas e pessoas que tiveram a sua vida afetada com o acidente como quem vivia da atividade pesqueira ou que teve sua água contaminada”, diz Gouvêa.
O professor afirma que a ação foi movida por um grupo muito mais amplo. E agora que a Justiça inglesa aceitou ser competente para julgar a ação, a Corte deverá analisar se a Justiça brasileira agiu de forma adequada e rápida e se indenizou de forma suficiente todos os envolvidos.
A solução encontrada no Brasil para reparar os danos com o acidente ao formar a Fundação Renova, que reúne as empresas envolvidas (Vale, Samarco e BHP), acabou, segundo o advogado, não sendo operacional na prática e não reparando com a rapidez que esses crimes ambientais exigem para minimizar o impacto da tragédia.
Por nota, a Fundação Renova informou que a reparação conduzida pela Fundação Renova se encontra em um momento de avanços consistentes. “Até maio, mais de 376 mil pessoas foram indenizadas ou receberam auxílios financeiros emergenciais, totalizando R$ 9,87 bilhões pagos a atingidos do Espírito Santo e de Minas Gerais.”
No reassentamento de Bento Rodrigues, o Instituto afirma que “47 casas foram concluídas e 103 estão em construção. Em Paracatu de Baixo, 36 tiveram as obras iniciadas”. Ainda foi concluída, segundo a nota, a implantação da restauração florestal em áreas onde houve depósito de rejeitos. “Uma área equivalente a 16 mil campos de futebol será reflorestada em terrenos não impactados por meio de editais de reflorestamento em Minas Gerais e no Espírito Santo”.
Sobre a água do rio Doce, a Renova informou que “se encontra em condições similares às anteriores ao rompimento e pode ser consumida após tratamento”. E que também foi concluído o repasse de R$ 830 milhões para os estados do Espírito Santo e de Minas Gerais e 38 municípios para investimentos em educação, infraestrutura e saúde. Por fim destacam que “cerca de R$ 21,8 bilhões foram desembolsados nas ações socioambientais e socioeconômicas”.
O professor de Direito Processual Cível, Daniel Neves, do NDF Advogados, afirma que é possível a tramitação de ações judiciais no Brasil e no Reino Unido ao mesmo tempo. Na Inglaterra, por ser a sede da BHP e no Brasil, local da tragédia. Ele afirma que o artigo 24 do Código de Processo Civil (CPC) é claro ao dizer que a ação proposta perante tribunal estrangeiro não proíbe que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que são conexas, “ressalvadas as disposições em contrário de tratados internacionais e acordos bilaterais em vigor no Brasil”. O que não é o caso, em questão. Para ele, o juiz brasileiro não pode pedir para encerrar a ação no exterior e vice-versa.
O que pode acontecer, eventualmente, segundo o professor, é alguma família que já foi indenizada no Brasil não conseguir reparação no exterior, sob pena do chamado bis in idem (ser reparado duas vezes pelo mesmo dano). Mas a ação inglesa aparenta ser muito mais abrangente e ampla do que as indenizações que ocorrem no Brasil.
Um jurista que preferiu não se identificar afirma que já emitiu três pareceres para ações que correm no exterior, sustentando que se já houve acordo não tem sentido nova demanda, seja onde for, porque seria o bis in idem e poderia caracterizar um enriquecimento sem causa, vedado pelo Código Civil.
O advogado Paulo Henrique Dantas, do Castro Barros Advogados, que tem atuado no caso em parceira com o PGBM afirma que realmente a ação tem um alcance muito maior do que as indenizações em curso no Brasil.
“Apesar do desastre ser o mesmo, são elementos diferentes. O que vai ser discutido na Inglaterra é uma compensação total para todas as vítimas e a reparação do dano”, diz. Por isso, esse valor estimado em 5 bilhões de libras, o que pode ser ainda maior, o que deve ser apurado ao longo da ação.
Para Dantas, a atuação da Fundação Renova, que ele acompanhou de perto, ao elaborar os relatórios para o escritório inglês, foi pouco efetiva e representa um modelo que não funciona. “Houve demora e dificuldade em indenizar”, diz. Como a estrutura societária da BHP e o centro decisório da companhia estão no Reino Unido, haveria então competência da Corte do Reino Unido em julgar a questão.
Ainda cabe recurso para a Suprema Corte sobre a competência, mas segundo especialistas, a decisão deve ser difícil de reverter. Caso seja superada essa discussão preliminar, o processo deve voltar à primeira instância para julgar o mérito sobre a responsabilidade da companhia.
Por nota, a BHP informou que “está avaliando se deve buscar permissão para apelar da decisão à Suprema Corte do Reino Unido”. A autorização de hoje anula a decisão anterior de novembro de 2020, que julgou a ação coletiva como um abuso processual, segundo o comunicado. A empresa ressalta que o julgamento não é sobre o mérito das reivindicações da ação coletiva, mas se refere a uma questão preliminar de saber se a ação coletiva pode continuar contra a BHP no Reino Unido. O caso foi ajuizado em 2018 e julgado em primeira instância em 2020, quando foi rejeitado sob o argumento de que duplicava as iniciativas de reparação de danos em curso no Brasil.