A continuidade dos serviços e obras públicas em tempos de covid-19
A pandemia da covid-19 fez com que o governo federal tomasse diversas medidas de enfrentamento à pandemia por meio da Lei nº 13.979/2020 e do Decreto nº 10.282/2020, a exemplo daquelas que pretendem evitar aglomerações sociais, como a quarentena e o isolamento. A comunidade internacional reconhece que tais medidas são necessárias para achatar a curva epidêmica, tendo em vista o alto índice de contágio do vírus e a necessidade de que o sistema de saúde do país absorva a demanda de pessoas infectadas, em especial daquelas que requeiram tratamento intensivo, e evitar um colapso do sistema como um todo.
Pelas restrições que impõem, tais medidas invariavelmente repercutirão na esfera econômica do país, o que requer, desde já, a reflexão sobre maneiras de resguardar e eventualmente recuperar as pessoas jurídicas de direito privado afetadas pelos efeitos da pandemia, tão logo a situação seja controlada. Dentro desse gênero, é ainda mais urgente analisar os impactos causados nas concessionárias, seja pela imposição legal de assegurar a continuidade dos serviços públicos por elas prestados, seja pela importância de garantir a subsistência do sistema de concessões em um período de crise, no qual é possível até mesmo uma suspensão completa das atividades prestadas e uma consequente redução na arrecadação das tarifas que remuneram esses prestadores.
Dois exemplos podem ilustrar os impactos sofridos pelas concessionárias nesse contexto. O primeiro diz respeito à Concessionária Tamoios, que recentemente precisou suspender suas obras de duplicação de rodovias em Caraguatatuba (SP), por conta de decisão judicial que reconheceu que o ambiente de trabalho dos funcionários apresentava elevado risco de contágio da covid-19. O segundo é relativo ao setor de transporte público coletivo que, devido à diminuição na circulação de pessoas, enfrenta drástica diminuição na arrecadação das tarifas cobradas dos usuários.
Tanto Lei das Concessões (Lei nº 8.987/1995) quanto a Lei Geral de Licitações (Lei nº 8.666/93), aplicada subsidiariamente, garantem aos contratados da Administração Pública o direito da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato. A Lei 8.666/93 inclusive prevê o reequilíbrio econômico financeiro do contrato na hipótese de ocorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, que impossibilitem ou retardem a execução do contrato, assegurada, assim, a manutenção das condições inicialmente pactuadas, sem onerar excessivamente o contratado.
A ocorrência de uma pandemia nas proporções da covid-19 e suas consequências na economia nacional e mundial certamente se enquadram em hipótese que enseja a necessidade de recompor o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão vigentes, sendo necessário somente desvendar o meio mais viável de assegurar os recursos para tanto, considerado o já comprometido orçamento do Estado neste momento de crise.
Possivelmente, os meios tradicionais de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro previstos no regramento jurídico das concessões (prorrogação do tempo da concessão, revisão das tarifas cobradas dos usuários e pagamento de indenização pelo Estado às concessionárias) se mostrarão insuficientes enquanto fontes de recurso, dada a excepcionalidade da crise financeira que se instaurará em decorrência da covid-19. Isso porque a prorrogação do prazo não oferece recursos imediatos às empresas com saúde financeira agravada, a revisão das tarifas transfere o ônus aos usuários dos serviços públicos, que também foram severamente atingidos pela pandemia, e o pagamento de indenização adviria do orçamento prejudicado das entidades da Administração Pública, que estão custeando medidas de emergência para combate à covid-19.
Nesse sentido, merece atenção o Projeto de Lei nº 7.063/17, que atualmente tramita na Câmara dos Deputados e que propõe um novo marco legal para as concessões, já que ele pode ser o meio para assegurar mecanismos jurídicos que possibilitem que o sistema de concessões sobreviva a momentos de crise como o atual.
O parecer do relator do Projeto de Lei foi aprovado em novembro de 2019, no qual foram estabelecidas relevantes mudanças em relação à atual Lei nº 8.987/95, dentre as quais a possibilidade da arbitragem para resolução de conflitos sobre o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos. Em fevereiro de 2020, entretanto, o governo federal apresentou um texto substitutivo ao parecer do relator, que suprimiu alguns dos dispositivos inicialmente apresentados, dentre os quais o artigo que estabelecia a chamada “outorga carimbada”.
De forma geral, essa expressão se refere à possibilidade de um edital de concessão prever que o valor de outorga pago pela concessionária será direcionado a investimentos específicos, seja para financiar a própria concessão, seja para financiar outros projetos, com recursos aplicados diretamente pela iniciativa privada O objetivo é incentivar investimentos na área de infraestrutura ao livrar o valor de outorga de amarras orçamentárias, que é atualmente revertido para a conta do Tesouro e é, em grande parte, utilizado para o pagamento de dívidas públicas.
Essa proposta enfrenta resistência principalmente da área econômica do governo federal, uma vez que retira receitas até então pertencentes aos cofres da União. Além disso, a “outorga carimbada” diminui o controle do Congresso sobre esses valores, que serão administrados e aplicados por particulares, o que também favorece o discurso de que esse é um caminho para eventuais práticas de corrupção.
Não se nega que, se aprovada, a “outorga carimbada” exigirá intensa fiscalização do Poder Concedente e dos órgãos de controle. Entretanto, o direcionamento dos valores de outorga de futuras concessões a elas próprias e às concessões já existentes pode ser uma importante ferramenta para assegurar a saúde financeira das concessionárias afetadas pela pandemia e a continuidade dos serviços públicos prestados.
O custo do controle, no cenário atual, parece pequeno diante dos inúmeros benefícios que a outorga carimbada, se bem aplicada, pode ter. Essa não deve ser uma alternativa descartada num momento em que uma nova lei é discutida, isto é, em que há amplo campo para o debate de suas proposições, e em que os gestores públicos e parlamentares precisam garantir que os efeitos da covid-19 e da consequente crise econômica na área de concessões sejam apenas um mal passageiro.
*Bianca Soares Silva Correia é advogada do Castro Barros Advogados com atuação em consultas e contencioso envolvendo questões de direito administrativo e em compliance
*Rebeca Spuch é estagiária do Castro Barros Advogados e faz parte da equipe de direito público e infraestrutura