Direito Público, Infraestrutura e Regulatório
Conjur

A (in)segurança jurídica no setor de infraestrutura

Nas últimas semanas observamos dois cenários que trazem de volta a discussão sobre a segurança jurídica — ou falta dela — nos projetos de infraestrutura no Brasil. Em primeiro lugar, testemunhamos uma intensa disputa envolvendo o Aeroporto Internacional de Manaus, recentemente leiloado na 6ª Rodada de Concessões de Aeroportos, dentro do chamado Bloco Norte, junto com outros seis aeroportos. A controvérsia gira(va) em torno de um pleito para exclusão do Aeroporto de Manaus do Bloco Norte devido à existência de um contrato prévio firmado pela Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero), que supostamente impediria sua concessão.

O segundo foram as várias idas e vindas — incluindo uma intervenção da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) — até que o leilão em blocos da Companhia Estadual de Águas e Esgoto do Rio de Janeiro (Cedae) pudesse ser realizado. A ideia deste artigo é discutir e analisar esses dois cenários que convergem para o mesmo problema, qual a seja, a falta de segurança jurídica em projetos de infraestrutura.

No caso do aeroporto de Manaus, o pano de fundo da disputa é uma licitação realizada pela Infraero em 2017, que tinha por objeto a concessão de uso de área para exploração comercial e operação da atividade de armazenagem e movimentação de cargas do Aeroporto Internacional de Manaus, e que foi vencida pela empresa SB Porto Seco Transporte Ltda.

O contrato de concessão de uso foi assinado em 2018 com prazo de duração de dez anos, mas, devido a questionamentos referentes ao procedimento licitatório, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que o contrato não fosse assinado ou, caso já o tivesse sido, que sua execução fosse suspensa. Posteriormente, a Infraero revogou o certame que deu origem ao contrato de concessão de uso por inteiro, alegando a existência de fatos posteriores que exigiam a busca por uma maior vantagem competitiva e que o contrato, apesar de assinado, ainda não havia sido publicado, conforme exige a Lei nº 8.666/93, o que possibilitaria sua revogação.

O Aeroporto de Manaus foi, então, incluído na 6ª Rodada de Concessões de Aeroportos como o grande atrativo do Bloco Norte e seu leilão foi marcado para o dia 7 de abril. Frente a isso, a SB Porto Seco requereu a suspensão do leilão nos autos de uma apelação que tramitava perante o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), na qual se discutia a legalidade da revogação da licitação de 2017 pela Infraero. Assim, no dia 6 de abril, um dia antes do leilão, o desembargador relator determinou cautelarmente que o Aeroporto de Manaus fosse retirado do Bloco Norte.

A União, buscando assegurar que o leilão ocorresse conforme previsto, ajuizou uma ação de suspensão de liminar e de sentença em face da decisão do TRF-1 perante o Superior Tribunal de Justiça e, ainda no dia 6, o ministro Humberto Martins, presidente do STJ, deferiu o pedido para sustar os efeitos da decisão do TRF-1, permitindo, assim, a reinclusão do Aeroporto de Manaus no Bloco Norte antes do leilão. Finalmente, no dia 7 de abril foi realizado o leilão da 6ª Rodada de Concessões de Aeroportos, no qual o Bloco Norte foi arrematado pela empresa francesa Vinci Airports por R$ 420 milhões.

Ocorre que, mesmo depois de realizado o leilão, uma nova decisão do ministro presidente do STJ no dia 20 de abril reconsiderou sua primeira decisão e determinou que o Aeroporto de Manaus fosse excluído do Bloco Norte. Frente a isso, a União ajuizou medida cautelar na suspensão de tutela provisória perante o Supremo Tribunal Federal e, no dia 26 de abril, o ministro Luiz Fux, presidente do STF, deferiu liminarmente o pedido de suspensão dos efeitos das decisões do TRF-1 e do STJ, de modo que o Aeroporto de Manaus voltou a ser incluído no Bloco Norte. O mérito ainda terá que ser discutido.

Retome o fôlego porque o caso do leilão da Cedae é ainda mais confuso. Na semana que antecedeu o leilão, o ministro Luiz Fux proferiu duas decisões suspendendo liminares que obstariam sua realização, uma proferida por um desembargador do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em ação direta de inconstitucionalidade, na qual se questionava o prazo da concessão, e outra proferida por uma desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, que havia determinado a suspensão do certame licitatório até que fosse apresentado estudo de impacto socioeconômico na relação com os trabalhadores da empresa. Nessa última decisão, o presidente do STF ainda determinou a suspensão de toda e qualquer decisão da Justiça de primeiro e de segundo graus que obste, parcial ou integralmente, o andamento do leilão.

Somando-se às controvérsias do Judiciário, a Alerj aprovou um projeto de decreto legislativo (PDL) que condicionava a concessão de serviços da Cedae à renovação do regime de recuperação fiscal (RRF). A aprovação do PDL, na prática, poderia ensejar a suspensão do leilão um dia antes da data agendada.

No entanto, em resposta à suspensão do leilão, a Casa Civil do governo do estado do Rio de Janeiro informou por meio de ato em edição extra do Diário Oficial que o leilão estaria mantido. Além disso, dois deputados impetraram um mandado de segurança perante o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) para suspender sua tramitação e seus efeitos, porém, o desembargador presidente do TJ-RJ indeferiu o pedido liminar, alegando que não poderia impedir a Alerj de exercer de forma autônoma e independente sua função legislativa e, portanto, fazendo prevalecer o PDL da Alerj sob o ato do governo do estado para manter o leilão.

Por fim, o mandado de segurança foi distribuído para o relator desembargador Benedicto Abicair, que, no dia que o leilão estava agendado, reverteu a decisão do dia anterior, deferindo a liminar para suspender os efeitos do PDL e, portanto, permitindo a realização do leilão. Em meio às controvérsias, o leilão ocorreu no dia 30 de abril, tendo três dos quatro blocos da concessão sido arrematados, arrecadando cerca de R$ 22,7 bilhões.

O que temos em comum em ambos os casos é o cenário de extrema insegurança jurídica, que apesar não ser exatamente uma novidade, demonstra dois grandes problemas para o setor de infraestrutura: 1) a falta de coerência e estabilidade por parte de todos os poderes envolvidos, quais sejam, Judiciário, Legislativo e Executivo; e 2) a fragilidade da fase preliminar de estudos e planejamento dos projetos de concessão.

O primeiro problema fica demonstrado de forma clara pelo tumulto causado por diversas decisões, em sua maioria monocráticas e em sede cautelar, que tumultuaram a realização de leilões relevantes e amplamente divulgados. Além disso, verificou-se até produção de uma medida legislativa aprovada às vésperas de um leilão que, ainda que possa ser legítimo, é totalmente intempestivo e desarrazoado.

Havia tempo mais do que suficiente para a adoção de outras medidas. O segundo problema, por sua vez, demonstra-se na medida em que, mesmo se tratando de projetos de grande magnitude, que além da fase de planejamento interno da Administração Pública, passaram pela análise prévia dos Tribunais de Contas correspondentes, os poderes concedentes não foram capazes de sanar eventuais irregularidades ou pendências quanto ao objeto da licitação antes de sua realização, permitindo seu questionamento às vésperas do leilão e mesmo após sua finalização.

Vejamos o caso do Aeroporto de Manaus. A organização da 6ª Rodada de Concessões de Aeroportos seguiu a modelagem conhecida como steak and bone (“filé e osso”), na qual estruturas deficitárias são concedidas junto com as superavitárias, sendo assim, o Aeroporto de Manaus é essencial para a atratividade do Bloco Norte do ponto de vista econômico. Se prevalecesse a decisão do STJ, qual seria a consequência para todos os envolvidos? É até difícil de mensurar. Ainda que aparentemente resolvida, a disputa envolvendo o Aeroporto de Manaus e a insegurança jurídica dela decorrente não agregam em nada nos esforços para que haja investimentos de qualidade e de longo prazo na infraestrutura.

O mesmo pode se dizer do caso do leilão da Cedae. Ainda que o resultado tenha sido considerado positivo, há ainda algumas pendências a serem resolvidas, em especial em relação ao bloco com menor potencial econômico que ficou de fora. Não acreditamos na alteração do resultado do leilão, mas também não dá para descartar novos episódios nesta novela, que, ao fim e ao cabo, não é nada confortável para os novos concessionários e, principalmente, para a população local.

O que se tira disso tudo é o óbvio. O setor da infraestrutura requer estabilidade e segurança para que possa receber investimentos que são necessariamente de longa duração. Não podemos nos dar ao luxo de desprezar os exemplos do passado com a falsa impressão de que um sucesso momentâneo é sinônimo de sucesso no longo prazo. O Aeroporto de Viracopos, ainda que as circunstâncias sejam diferentes, está aí para servir de exemplo do que não se deve fazer. Os desafios de projetos desta natureza tendem a se multiplicar e se a base, seja ela contratual, institucional ou política, não for razoavelmente sólida, os problemas tendem a ser tão grandes quanto os objetivos traçados.

Paulo Henrique Spirandeli Dantas é advogado da Equipe de Direito Público, Infraestrutura e regulatório do escritório Castro Barros Advogados.

Rebeca Spuch é advogada da Equipe de Direito Público, Infraestrutura e regulatório do escritório Castro Barros Advogados.

Revista Consultor Jurídico, 20 de maio de 2021.

https://www.conjur.com.br/2021-mai-20/opiniao-inseguranca-juridica-setor-infraestrutura