As termelétricas a gás na transição energética nacional
Ao aprovar a Lei 14.182, de 12 de junho de 2021 (Lei Eletrobras), que permitiu a desestatização da empresa, houve bastante ruído em relação à inclusão da necessidade de se contratar geração de termelétricas movidas a gás natural, por meio de leilões de reserva de capacidade.
Em termos práticos, a Lei Eletrobras prevê a inserção de 8 gigawatts (GW) em termelétricas a gás no Sistema Interligado Nacional (SIN) em todas as regiões do Brasil até 2030. Para que isso seja possível, é preciso criar toda uma estrutura de gasodutos e linhas de transmissão, que de acordo com estudos realizados pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) poderiam chegar a R$ 52 bilhões, apenas no que diz respeito à operação. Produto de um jabuti – aquela inserção legislativa que não tem qualquer relação com a lei em discussão -, a inclusão das termelétricas no processo de desestatização da Eletrobras não foi bem aceita pelo mercado.
A começar, a técnica legislativa utilizada não foi das mais transparentes, muito pelo contrário. Um exemplo concreto disso é que seria virtualmente impossível vetar a inclusão das termelétricas sem vetar todo o processo de desestatização da Eletrobrás.
Isso porque, o §1º do artigo 1º da Lei Eletrobras, que determina a modalidade da desestatização por meio do aumento de capital, também inclui, em sua longa redação, a obrigatoriedade das termelétricas. Assim, a situação que se colocou era: ou se aprovava tudo ou não se aprovava nada. Como o processo de desestatização da Eletrobras era um dos projetos prioritários do governo, não havia discussão possível.
Além disso, a obrigatoriedade de se contratar 8 GW das termelétricas fará com que a entrada de energias renováveis no SIN seja cada vez mais postergada, pois os espaços estarão, pelo menos em tese, reservados para as tais termelétricas. Isso tudo demonstra falta de uma política pública condizente com a realidade brasileira e mundial, em que se discute de forma concreta a descarbonização da economia e a transição energética.
No caso do Brasil, é inegável o potencial de desenvolvimento das energias renováveis, notadamente eólica e solar, que pode ser desperdiçado por atender a uma demanda que foge à racionalidade econômica, ambiental e até mesmo jurídica. Ademais, é preciso sempre entender de onde sairão os recursos para tais investimentos. A iniciativa privada, tanto no mercado doméstico quanto no internacional, está cada vez mais relutante em investir em projetos que não estejam aderentes ao movimento de descarbonização e de combate às mudanças climáticas. Assim, não será uma surpresa se tais recursos advenham novamente do Poder Público, via subsídios ou por meio de bancos de fomento, o que contraria a tendência de se esvaziar esse tipo de iniciativa.
Não se trata de negar a importância das termelétricas a gás no equilíbrio do sistema e de seu papel na intricada e complexa matriz energética brasileira. No entanto, segundo estudos do setor, esse equilíbrio será alcançado de forma mais eficiente, tanto econômica como ambientalmente, com a combinação de termelétricas sem geração compulsória (as chamadas termelétricas totalmente flexíveis) com as fontes de energia renováveis variáveis (eólica, solar etc.), somadas à energia hidrelétrica, ainda predominante.
No entanto, da maneira que foi aprovada a Lei Eletrobras, as termelétricas a gás terão que funcionar integralmente e no mínimo com 70% de sua capacidade por 15 anos, tornando-se, portanto, inflexíveis. Isso pode afastar de vez o Brasil de um papel de relevância na transição energética global. A solução mais prática e concreta para isso é uma mudança na Lei Eletrobras, de forma a trazer um amplo debate sobre o tema – que não ocorreu quando da edição da Medida Provisória 1.031/21 e na sua lei de conversão – e que esteja aderente a uma política pública racional e inserida no contexto global de descarbonização da economia.
Em ano eleitoral essa discussão certamente não irá ocorrer, mas, como estamos prestes a entrar em uma nova legislatura e a desestatização da Eletrobras já ocorreu, é capaz de se encontrar as condições necessárias para tanto. Mas é preciso ter pressa, a mudança climática é uma realidade, assim como algumas alterações na base da economia mundial, e é razoável admitir que nem uma nem outra irão esperar por mais 15 anos.
* Paulo Henrique Spirandeli Dantas, advogado especializado em Infraestrutura e Direito Administrativo do escritório Castro Barros Advogados. Paulo Dantas escreve periodicamente para a Coluna Legal, do Broadcast Energia.
Este artigo representa exclusivamente a visão do autor.