O embate sobre a (in)constitucionalidade do novo marco legal do saneamento
Posicionamento definitivo do STF nas ADIs é importante para sedimentar as discussões remanescentes.
Os péssimos índices do saneamento básico no Brasil não são novidade, mas esse assunto ganhou proeminência no último ano, motivado pelo trâmite do Projeto de Lei nº 4.162/2019, que deu origem à atualização do Marco Legal do Saneamento Básico, consolidado por meio da Lei Federal nº 14.026/2020.
Vista com grande interesse por toda a sociedade, a aprovação dessa Lei não deixou de suscitar críticas, algumas das quais ocorreram na forma de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (“ADI”). Não se descarta, no entanto, a possibilidade de novos embates jurídicos, tendo em vista o estudo realizado pela Roland Berger1, que aponta que 60% dos contratos das estatais que atuam no setor estão ameaçados pelas diretrizes do novo diploma normativo.
A primeira a ser ajuizada foi a ADI nº 6492, a respeito da qual o Supremo Tribunal Federal (“STF”) somente se manifestou para negar o pedido de medida cautelar formulado. A ADI nº 6536, mais recente, ainda não foi apreciada em quaisquer de seus pedidos, de sorte que a análise da constitucionalidade do Novo Marco Legal do Saneamento permanece sem resposta definitiva.
A ADI nº 6492 impugna os arts. 3º, 5º, 7º, 11 e 13 da nova Lei, e requer interpretação conforme a Constituição Federal (“CF/88”) do art. 22, IV. O art. 3º atribui à Agência Nacional de Águas (“ANA”) competência para estabelecer normas de referência sobre regulação tarifária e padronização dos instrumentos negociais de prestação de serviços de saneamento básico.
Argumenta-se que esse dispositivo mitigaria a competência dada aos Municípios pelos arts. 18, 29, caput, 30, incisos I e V da Constituição Federal (“CF/88”). Estes, por sua vez, tratam: (i) da autonomia dos entes federativos; (ii) da regência dos municípios por lei orgânica municipal; e (iii) da competência dos Municípios para legislar sobre assunto de interesse local, assim como para organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local.
Da mesma forma, os artigos 5º e 11 da Lei Federal nº 14.026/2020, ao alterarem as Leis nº 9.984/2000, 11.445/2007 e 12.305/2010, que regulam o serviço de saneamento básico, violariam o texto constitucional ao mitigar a autonomia dos Municípios na matéria. Ainda por essa razão, também foi questionado o mecanismo de condicionamento de repasses da União à permanência dos Municípios na Unidade Regional de Saneamento Básico.
A ADI nº 6492 impugna os arts. 3º, 5º, 7º, 11 e 13 da nova Lei, e requer interpretação conforme a Constituição Federal (“CF/88”) do art. 22, IV. O art. 3º atribui à Agência Nacional de Águas (“ANA”) competência para estabelecer normas de referência sobre regulação tarifária e padronização dos instrumentos negociais de prestação de serviços de saneamento básico.
Argumenta-se que esse dispositivo mitigaria a competência dada aos Municípios pelos arts. 18, 29, caput, 30, incisos I e V da Constituição Federal (“CF/88”). Estes, por sua vez, tratam: (i) da autonomia dos entes federativos; (ii) da regência dos municípios por lei orgânica municipal; e (iii) da competência dos Municípios para legislar sobre assunto de interesse local, assim como para organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local.
Da mesma forma, os artigos 5º e 11 da Lei Federal nº 14.026/2020, ao alterarem as Leis nº 9.984/2000, 11.445/2007 e 12.305/2010, que regulam o serviço de saneamento básico, violariam o texto constitucional ao mitigar a autonomia dos Municípios na matéria. Ainda por essa razão, também foi questionado o mecanismo de condicionamento de repasses da União à permanência dos Municípios na Unidade Regional de Saneamento Básico.
Os arts. 5º e o art. 7º do Novo Marco Legal do Saneamento também foram enfrentados pela ADI nº 6492, em razão da criação de cargos de Especialista em Regulação de Recursos Hídricos e Saneamento Básico nos quadros de pessoal da ANA e do Comitê Interministerial de Saneamento Básico (“CISB”) sem estudo de impacto econômico, financeiro e orçamentário, o que violaria o art. 113 do Ato das Disposições Transitórias (“ADCT”), que faz essa exigência para a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória.
O art. 7º da Lei Federal nº 14.026/2020 é apontado, na verdade, como causador de inconstitucionalidade sistêmica ao vedar, juntamente com os arts. 13, 14 e 18, a utilização de contratos de programa, já que violaria diversos dispositivos constitucionais. Dentre esses, destaca-se: (i) o art. 5º, XXXVI da CF/88, que prevê a inviolabilidade ao ato jurídico perfeito; e (ii) o art. 241 da CF/88, que autoriza que os entes federativos disciplinem por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre eles, na medida em que constituiria empecilho às formas de interação entre os entes públicos para prestação de serviço.
Por fim, argumenta-se pela violação ao art. 3º, III da CF/88, que dispõe sobre o objetivo fundamental de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Isso porque o seu cumprimento decorreria da superação do estado liberal pelo estado social. Requer-se, ainda, a interpretação do art. 22, IV conforme a CF/88, para que as tarifas subam de acordo com o salário mínimo, e, assim, seja dado efetivo prestígio ao princípio constitucional da universalização do serviço de saneamento básico, de modo a garantir que os cidadãos não sejam onerados com a intensificação da “mercancia da água”.
Ao proferir a decisão que negou a antecipação de tutela da ADI nº 6492, o Ministro do STF Luiz Fux deu pistas sobre o entendimento a ser adotado na análise do mérito da ação. Segundo ele: “A realidade alarmante de precariedade sanitária no Brasil exige uma atuação imediata, concertada e eficiente do poder público”, dando a entender que o Novo Marco Legal do Saneamento seria o meio para essa atuação.
Além disso, afastou a alegação de violação ao pacto federativo nos seguintes termos: “Como reiteradamente afirmado por este Tribunal, a Federação não pode servir de escudo para se deixar a população à míngua dos serviços mais básicos à sua dignidade, ainda que a pluralidade e especificidades locais precisem ser preservadas”. Também invoca a decisão proferida na ADI nº 1842 para destacar que: “a Federação atual exige a gestão compartilhada entre os entes em prol de se promover direitos e eficiência estatal”.
Em relação à alegada concentração regulatória da ANA, o Ministro Luiz Fux entende ser necessário analisar mais profundamente a questão, mas assevera que “A medida, a princípio, pretende solucionar os riscos gerados pela sobreposição de entidades reguladoras. Ainda que, em certos casos, a coexistência seja benéfica e consentânea com a complexidade inerente a alguns sistemas, pode ser ineficiente, ao causar inconsistências, onerar excessivamente o usuário ou comprometer a clareza das diretrizes. Há, ainda, o risco de colapso das regras regulatórias em razão da dependência regulatória, em que a busca por legitimidade de cada agência por seu mandato é moldada pela conduta das outras, na contramão de uma cooperação regulatória”.
Por fim, ao analisar o alegado risco à modicidade da tarifa causada pela transferência do serviço de saneamento para a iniciativa privada, faz uma defesa contundente da livre iniciativa e da livre concorrência: “sobretudo quando em benefício de uma prestação mais adequada de um serviço público que demanda investimentos vultosos, de longo prazo e de baixo retorno político”.
A ADI nº 6536, por sua vez, busca a declaração de inconstitucionalidade da integralidade do texto da Lei Federal nº 14.026/2020, com efeitos retroativos, sustentando que há diversas inconstitucionalidades sistêmicas no texto. Dentre os argumentos é possível destacar os seguintes:
(i) a criação de novas competências para a ANA implicaria em prejuízo para as competências já desempenhadas pelo seu quadro de pessoal que, qualificado para as competências originais, não teria conhecimento técnico para as novas competências de saneamento;
(ii) haveria desvio de finalidade dos servidores titulares do cargo público de Especialista em Regulação de Recursos Hídricos na estrutura originária da ANA, pois isso atentaria contra o princípio da legalidade e do concurso público (art. 37, caput, e inciso II, CF/88), posto que a lei ordinária não poderia subordinar o servidor de cargo efetivo ao exercício de novas atribuições inexistentes no momento de sua investidura, além da existência de vedação legal à realização de concurso público até 31 de dezembro de 2021 (art. 8º, inciso V, Lei Complementar nº 173/2020);
(iii) haveria quebra do Pacto Federativo no estabelecimento do Governo Federal como detentor da maioria dos recursos financeiros que podem ser alocados ao setor, e na transferência de competência legislativa para autarquia pública federal, quando a CF/88 a atribui aos Municípios;
(iv) haveria impedimento de que uma administração pública coopere com outra para que haja prestação direta (in house providing), o que força a administração a privatizá-la (privatisation forcée), o que comprometeria subsídio cruzado entre os sistemas municipais superavitários e deficitários, e, em última análise, o princípio fundamental do Federalismo Cooperativo;
(v) também violaria o pacto federativo a redução das prerrogativas dos Municípios, titulares dos serviços de saneamento básico, na medida e, que comprometeriam o legítimo exercício da autonomia municipal (auto-gestão, autoadministração e autogoverno) e a decisão sobre qual forma de prestação atende melhor o interesse público diante da singularidade local.
Ainda que, na decisão que negou o pedido de medida cautelar formulado na ADI nº 6492, o Ministro Luiz Fux tenha tido o cuidado de afirmar que “É inegável que o desenho normativo do marco regulatório de um setor tão sensível a todos os brasileiros não pode ser isento a um controle social e jurídico rigorosos, sobretudo diante dos imperativos constitucionais de universalização, adequação e eficiência”, é possível notar, em suas palavras, uma inclinação ao afastamento das alegações de inconstitucionalidade constante do novo Marco Legal do Saneamento Básico, também favorecido pelo contexto sócio-político atual.
O posicionamento definitivo do STF nessas ADIs é importante para sedimentar as discussões remanescentes e, então, promover a estabilidade jurídica necessária ao desenvolvimento do setor. Além disso, a confirmação da tendência pela constitucionalidade da norma pode incentivar os investimentos privados num momento de retomada econômica e, com isso, favorecer o cumprimento do audacioso objetivo de universalização dos serviços até o ano de 2033.
É preciso aprender as lições decorrentes do insucesso do antigo Marco Legal do Saneamento Básico, cujos objetivos foram significativamente comprometidos pela constante instabilidade regulatória e pela falta de articulação entre os setores público e privado. Nesse sentido, importa também reformular a ideia de antagonismo da relação público-privada e reconhecer que há um caminho para a cooperação entre os envolvidos.
PAULO HENRIQUE SPIRANDELI DANTAS – Pós-Graduação em Direito e Economia pela Universidade de Utrecht, Holanda (2007). Especialização em Direito Administrativo pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (2006) e Graduação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001). Advogado das áreas de Direito Administrativo e Compliance do Castro Barros Advogados, Membro da Comissão de Infraestrutura da OAB/SP e Membro da Royal Institution of Chartered Surveyors (MRICS).
BIANCA SOARES SILVA CORREIA – Mestrado em Direito Administrativo (em curso) e Graduação na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2013). Advogada das áreas de Direito Administrativo e Compliance do Castro Barros Advogados. Integrante da Comissão de Direito Administrativo da OAB/SP e do Infrawomen.