O novo ciclo do etanol
Desde o surgimento do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), em meados da década de 70, o etanol já possou por vários ciclos no seu desenvolvimento aqui no Brasil e quase chegou no seu apogeu quando da produção de veículos flex. Mas ainda há um certo consenso que o etanol ainda não atingiu todo o seu potencial, apesar do Brasil ser o segundo maior produtor mundial.
De toda forma, é razoável dizer que estamos prestes a entrar em uma nova fase energética em que o etanol pode ter um papel de destaque. Nos últimos artigos falamos do potencial das fontes renováveis de energia no Brasil, passando pela eólica, solar e do hidrogênio verde. O etanol, se bem regulamentado, também pode e deve fazer parte deste time.
Não por outra razão o ciclo produtivo do etanol é regulado pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) por meio de suas resoluções. Mas nem sempre foi assim. Foi só em 2011, por meio da Medida Provisória 532/11 convertida na Lei 12.490/2011, que foi atribuído à ANP a fiscalização e a regulamentação do setor produtivo de etanol, antes considerado um subproduto agrícola.
Antes, apenas o biodiesel era regulado pela ANP e agora todos os biocombustíveis têm sua produção, importação, exportação, estocagem e venda controlados pela agência.
Isso é importante, porque dá uma certa coerência para o setor e organiza, pelo menos em tese, a política de combustíveis no Brasil. Vale pontuar que na Resolução nº 26/2012 a ANP regula a atividade de produção de álcool combustível, especificando que abrange construção, ampliação de capacidade, modificação e operação de Planta Produtora de Etanol, condicionando tais atividades à prévia e expressa autorização da agência, do mesmo modo que já fazia com o biodiesel.
A inovação da mencionada norma é o conceito de pequeno produtor de etanol, como aquele que produz até 200 m³ por ano, para os quais há expressa autorização para qualquer das ações regulamentadas pela referida resolução, desde que exista comprovação, junto à ANP, dessa condição. Portanto, o potencial é realmente muito grande.
Apesar dos avanços e dificuldades do setor, o principal tema em debate sobre a regulação do etanol se dá, principalmente, em relação à comercialização entre produtos e revendedores. A Resolução da ANP Nº 5, de 13 de fevereiro de 2006, estabelecia regras para o cadastramento de fornecedores, distribuidores e importadores de álcool combustível, no qual todos os agentes tiveram que se cadastrar junto à ANP para comercializarem o produto.
Desde 2020, a ANP vem estudando a possibilidade de flexibilização desse atual modelo de comercialização de etanol hidratado combustível (EHC) entre produtores e postos revendedores, isto é, a autorização da venda direta de etanol da refinaria ao posto. A Agência realizou audiências e consultas públicas sobre o tema ao longo de 2020. Nesse sentido, tal flexibilização também esteve em debate na Câmara dos Deputados.
Em maio de 2021, a CCJ aprovou parecer sobre a venda direta de etanol, dando aval pela constitucionalidade do Projeto de Decreto Legislativo (PDC 978/2018). O PDC 978/2018 susta o art. 6º da Resolução nº 43, de 22 de dezembro de 2009, da ANP, relacionado com a impossibilidade da venda direta, sem intermédio das distribuidoras. Após a declaração de constitucionalidade, o mérito do assunto está em discussão na Câmara dos Deputados. Independente disso, em 13 de agosto de 2021, foi publicada a Medida Provisória 1063/21 que autoriza produtores e importadores de etanol hidratado (álcool combustível) a comercializarem o produto diretamente com os postos de combustíveis, sem passar pelas distribuidoras.
O governo acreditando (ou torcendo) que a mudança vai incentivar a concorrência, reduzindo o preço final aos consumidores, acabou de publicar na última segunda-feira (13) a MP 1.069/2021, que dispõe sobre a comercialização de combustíveis por revendedor varejista e busca solucionar algumas questões que a MP 1.063/2021 suscitou – principalmente em relação aos contratos atualmente vigentes. A Medida Provisória de agosto derrubou a proibição dos postos vinculados a distribuidor específico (“bandeirados”) de vender combustível de outro fornecedor, vinculando a mudança à regulamentação pela ANP.
Já a Medida Provisória desta segunda-feira, dia 13, prevê que, enquanto a ANP não regular a matéria, valerão as regras previstas em decreto. Além disso, a MP 1.063/2021 abrangia apenas “agente produtor ou importador de etanol”, enquanto a MP 1.069/2021 amplia a abrangência para “o agente produtor, a cooperativa de produção ou comercialização de etanol, a empresa comercializadora de etanol ou o importador de etanol”.
Nesse sentido, nesta terça-feira (14), o Decreto 10.792/2021 foi publicado. Este obriga, em seu artigo 2º, os postos a identificar de forma “destacada e de fácil visualização” a origem do combustível vendido. Portanto, como disposto na MP desta segunda-feira, o Decreto 10.792/2021 já regula a MP 1.069/2021, enquanto não houver sistematização pela ANP. A mudança proposta parece atender posicionamento dos Procons em consulta pública da ANP, na medida em que se alegava que a simples liberação fere dispositivos legais que garantem ao consumidor direito à informação clara, precisa e adequada e que estabelecem obrigações de prestadores serviços de fornecer informações adequadas sobre os produtos. Mas o assunto está longe de estar resolvido. Grandes distribuidores, alegando risco de desestruturação do mercado e insegurança jurídica, estão tentando derrubar essas mudanças no Congresso.
De toda forma, apesar da polêmica atual se centrar no valor dos combustíveis, o certo é que o etanol tem todo o potencial de ser um fator de destaque na mudança energética que o mundo de uma maneira geral está se propondo a fazer. A forma de regular o mercado será determinante para isso. Como a vocação do etanol está – pelo menos em um primeiro momento – na sua forma de biocombustível, é possível que se consolide um mercado muito maior do que já temos hoje no Brasil.
Mas é importante que as políticas estejam calibradas com as tendências mundiais, desde a preservação do ambiente na sua produção, chegando até a sua melhor utilização pelo consumidor final. As iniciativas de tentar reduzir a pegada de carbono nos próximos anos deve passar necessariamente por um incremento no uso de biocombustíveis, dentre os quais o etanol se destaca. O Estado de São Paulo, por exemplo, aderiu recentemente ao Race to Zero, que é uma campanha mundial organizada pela ONU para zerar a emissão de poluentes até 2050. Assim, dar condições para um mercado já maduro, mas que precisa ainda evoluir, será determinante para que se possa aproveitar todas as oportunidades que se apresentam hoje e no futuro.
*Paulo Henrique Spirandeli Dantas, advogado especializado em Infraestrutura e Direito Administrativo e sócio do escritório Castro Barros Advogados. Escreve periodicamente para a Coluna Legal, do Broadcast Energia.