O papel da União na Eletrobras pós desestatização
A desestatização da Eletrobras avança e, após aprovação do modelo pelo Tribunal de Contas da União (TCU), o processo deverá ser acelerado para que ocorra ainda em junho, ainda que exista a possibilidade concreta de judicialização do tema. De qualquer modo, a tendência é que a oferta de ações ocorra, ainda que com um possível atraso.
A desestatização ocorrerá por meio de um aumento de capital da Eletrobras e da subscrição pública de ações ordinárias. Haverá renúncia do direito de subscrição pela União, que, por sua vez, terá sua participação societária diluída de 72% para 45% e consequente perda de controle.
Em termos práticos, a diluição da participação acionária da União na Eletrobras fará com que ela deixe de ser uma empresa de economia mista para ser uma empresa efetivamente privada. A Eletrobras contará ainda, porém, com participação societária relevante da União.
A diferença parece ser sutil, mas fará toda a diferença na condução da empresa. No caso das empresas de econômica mista, como hoje é o caso da Eletrobras, a maioria das ações com direito a voto pertencem à União, fazendo com que a empresa seja obrigada a obedecer a Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016, a chamada Lei das Estatais. Após o processo da desestatização, a Eletrobras não será mais considerada uma empresa de economia mista e, portanto, não deverá mais observar às Lei das Estatais, o que significa dizer que não será mais necessária a realização de licitação para contratação, assim como não haverá, pelo menos em tese, indicação direta da União para constituição do Conselho de Administração e para a diretoria.
Outro ponto de destaque é que a Eletrobras também não estará sob controle do Tribunal de Contas da União. No entanto, uma vez concretizada a desestatização, é de se questionar qual será o papel da União na Eletrobras. Em primeiro lugar, independente do porcentual que será detido pela União, como parte dos preparativos para a desestatização da Eletrobras e conforme previsto na Lei 14.182, de 12 de julho de 2021, foi aprovada em Assembleia Geral Extraordinária, realizada no dia 22 de fevereiro de 2022, a criação de ação preferencial de classe especial (comumente conhecida no mercado como golden share), a qual será subscrita à União para sua propriedade exclusiva, “que dará o poder de veto nas deliberações sociais que visarem modificar ou remover os dispositivos estatutários a serem criados (…), para, nos termos da Lei n° 14.182/2021: (i) vedar que qualquer acionista ou grupo de acionistas exerça votos em número superior a 10% (dez por cento) da quantidade de ações em que se dividir o capital votante da Companhia; e (ii) vedar a celebração de acordo de acionistas para o exercício de direito de voto, exceto para a formação de blocos com número de votos inferior a 10% (dez por cento) da quantidade de ações em que se dividir o capital votante da Companhia, com a consequente reforma do Estatuto Social para prever tal conversão e a existência de tal ação preferencial de classe especial”.
Portanto, apesar da desestatização da Eletrobras, há que se considerar a grande influência que a União continuará tendo na companhia. A utilização de golden share não é algo exatamente novo no Brasil, afinal já foi utilizada, por exemplo, na desestatização da Embraer, Vale e IRB, variando seu alcance de empresa para empresa. De todo modo, trata-se de mecanismo utilizado para exercer um certo controle em atividades que possuem valor estratégico para a País, como é o caso da Eletrobras.
Portanto, este ponto não poderá ser descartado por aqueles que tiverem interesse em investir neste processo de desestatização. Nesta mesma assembleia, foi aprovada, com eficácia condicionada à desestatização da Eletrobras, a reestruturação societária da companhia para manter sob controle direto ou indireto da União, por meio da Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional (ENBPar), as instalações e participações detidas e gerenciadas pela Eletrobras, especificamente na Eletronuclear e na Usina de Itaipu.
Portanto, curiosamente, no processo de desestatização da Eletrobras foi criada, por meio do Decreto nº 10.791, de 10 de setembro de 2021, uma estatal que estará vinculada ao Ministério de Minas e Energia, que, além de controlar a Eletronuclear e a Usina de Itaipu, também será responsável pelas políticas públicas de universalização de energia elétrica: Luz para todos, Mais Luz para a Amazônia, Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfra) e ações do Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (Procel).
Verifica-se, portanto, que a União, seja por meio de seu poder de veto na Eletrobras pós desestatização, ou por meio da ENBpar, continuará tendo um papel relevante na condução das decisões relacionadas à oferta de energia elétrica e política energética nacional. O grande desafio é fazer com que os interesses da União – ou, em última medida, da população – sejam atendidos neste novo modelo. É preciso ter pé no chão e assumir que panaceias não existem neste setor (e em infraestrutura em geral) e os problemas não serão resolvidos de uma hora para outra.
Como se pode perceber, a desestatização não encerrará a participação da União no setor, nem na Eletrobras, muito pelo contrário. Sem eventuais amarras que possam hoje existir, é dever da União agir com zelo redobrado para que os objetivos que se almeja neste processo de desestatização sejam alcançados, como, por exemplo, a modernização e diversificação da matriz energética, novos investimentos e, especialmente, tarifas que sejam compatíveis com a realidade econômica nacional.
Paulo Henrique Spirandeli Dantas, advogado especializado em Infraestrutura e Direito Administrativo e sócio do escritório Castro Barros Advogados. Escreve periodicamente para a Coluna Legal, do Broadcast Energia.