Seguros e Resseguros
Valor Financeiro

Abertura para o mercado de capitais

Nova medida permitirá transformar dívida em títulos negociáveis, mas é preciso definir o tipo de risco envolvido e o perfil de investidor

O primeiro trimestre de 2022 deu ao mercado ressegurador brasileiro um crescimento de 10,3% no volume de prémios cedidos pelas seguradoras em relação aos três primeiros meses de 2021. Foram R$ 5,25 bilhões em cessão entre janeiro e março, que representam quase 30% da cessão em todo o ano passado (R$ 18,65 bilhões), segundo a Superintendência de Seguros Privados (Susep). A expansão em 2022 confirma a continuidade da recuperação do setor, impactado de maneira particular pela pandemia da covid-19.

“Ha um crescimento significativo da pulverização em resseguro em todas as linhas de negócio, independentemente do segmento. No entanto, linhas como a de seguros patrimoniais, rural e carteiras com perfil massificado, como as de autom6veis, também apresentaram maior cessão em resseguro”, diz Diogo Ornellas, coordenador-geral de grandes riscos e resseguros da Susep. Em 2021, 0 resseguro cresceu 30,2% sobre 2020.

A comemoração pelo avanço, no entanto, só não é maior porque ele vem acompanhado de um aumento da sinistralidade em quase todos os ramos das seguradoras —tanto em 2021 quanto em 2022. Com a sinistralidade em alta nas empresas de seguro, a das resseguradoras também aumenta, já que assumem o risco transferido pelas seguradoras. Os sinistros de resseguros pagos no ano passado somaram R$ 13,5 bilhões, 41% mais em relação a 2020. Um índice 4,5 pontos percentuais superior entre os dois períodos, passando de 55,5% para 60,0%, segundo a própria Susep.

Uma alternativa ao modelo tradicional de transferência de riscos de seguradoras e resseguradoras deve chegar ao setor. Em março deste ano, o governo federal editou a Medida Provisória (MP) 1.103, também chamada de o Novo Marco da Securitização, que permitirá ao mercado segurador transformar dívidas em títulos de crédito negociáveis para financiar essas operações.  A MP criou dois produtos: a Letra de Risco de Seguro (LRS)e o Certificado de Recebíveis (CR), com os quais será possível captar recursos no mercado de capitais. Para que esses dois instrumentos cheguem as plataformas das seguradoras, no entanto, a medida, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro, depende de aprovação no Congresso.

As LRS surgiram no mercado internacional nos anos 1990. Batizadas de Insurance Linked Securities (ILS), são uma forma de usar o mercado de capitais para financiar a aceitação de riscos por meio de títulos vinculados a uma carteira de apólices. Pela MP 1.103, elas serão emitidas exclusivamente por Sociedades Seguradoras de Propósito Específico (SSPE), empresas que atuam no mercado de riscos de seguro, de resseguro, além de previdência e de saúde complementares, que não existiam até então com esse foco específico trazido pela MP.

“A MP traz uma nova ferramenta para captação financeira que ao mesmo tempo pulveriza o risco da operação do seguro na medida em que os títulos emitidos com essa finalidade serão negociados com investidores do mercado de capitais. A LRS é muito parecida com as próprias ofertas de securitização”, diz Ricardo Stuber, do escritório TozziniFreire Advogados. Sua aceitação pelos investidores, no entanto, vai depender de como ela chegará embalada ao mercado, uma vez que, até o momento, já recebeu 55 emendas, diz Stuber.

Paulo Pereira, presidente da Federação Nacional das Empresas de Resseguros (Fenaber), elogia a chegada da MP. “O que está acontecendo mundo afora é que o mercado de capitais tem capital, mas quem conhece de risco somos nós. Então, ele empresta o dinheiro dando capacidade ao mercado de atender grandes riscos e usa nosso know-how para aceitar o risco. Estamos nos unindo”, diz Pereira. É uma operação para investidor sofisticado que conheça o setor, com certeza, completa.

O mercado de capitais ganha com a MP 1.103 a possibilidade de ter novos Certificados de Recebíveis (CR), títulos de dívidas que, negociados no mercado, também funcionam como um instrumento de captação de recursos. Com o uso dos CR, até então restritos aos mercados imobiliários e do agronegócio, a MP estende seu uso a todos os segmentos da economia. Porém, diferentemente dos atuais Certificado de Recebível Imobiliário (CRI) e Certificado de Recebimento do Agronegócio (CRA), o novo CR nascido da MP não deve ser voltado ao investidor de varejo.

Leticia Galdino, sócia das áreas de mercado de capitais, fundos de investimento e M&A do escritório Demarest Advogados, diz que, apesar de o instrumento da MP servir para pulverizar o risco das resseguradoras, é necessário criar uma estrutura que possa mitigar o risco do investidor, deixando claro que tipo de investidor poderá assumir esse risco, como o produto vai remunerar o investidor e como a seguradora gerou aquela apólice. “Talvez o produto fique restrito a alguns apenas”, afirma.

Marcela Hill e Jaqueline Suryan, sócias da área de seguros do escritório Campos Melo Advogados (CMA), consideram a “MP 1.103 nebulosa’” e criticam o fato de ela “não deixar claro como a LRS ser operacionalizada, além da obrigatoriedade trazida pela MP da criação de uma seguradora apenas para aceitar riscos relativos a essa norma’, dizem. Carlos Ximenes, do escritório Castro Barros Advogados, enxerga na MP uma controvérsia. “A nova legislação é incompatível com a regulação vigente e as normas atuais não comportam uma Sociedade de Crédito Específico”, diz.

A Susep vem acompanhando os desdobramentos relativos à aprovação da MP, assim como estuda o tema para levar a apreciação do Conselho Nacional de Seguros Privados. A LRS amplia as oportunidades para o mercado ressegurador a partir da criação da Sociedade de Propósito Específico e da emissão da letra de risco de seguros.

Entre as resseguradoras, a MP 1.103 é bem-vinda. “A medida poderá trazer mais oportunidades para o mercado ressegurador. Mas os títulos não deverão ser para apólices de valores menores nem para riscos individuais. É um produto sofisticado”, diz Bruno Freire, CEO da Austral Re. Em 2021, a Austral Re somou R$ 1,092 bilhão em faturamento, aumento de 17% em prémios sobre2020. Segundo Freire, o resultado se deveu ao reposicionamento da carteira da empresa, como a redução da exposição a riscos voláteis, relacionados a mudanças climáticas, como o do setor agropecuário, diz. A aquisição da Markel Resseguradora, segunda compra do grupo em dois anos, permitiu a Austral incorporar R$ 50 milhões em seu resultado e R$ 1,1 bilhão em prêmios.

“O resultado do primeiro trimestre foi positivo e expandimos as operações na América Latina, com ajuda de um escritório na Colômbia”, diz Freire. Hoje, 25% do total de prêmios aceitos pela empresa vem de fora do Brasil. “Para 2022, a meta é reforçar a carteira do ramo vida, que representa atualmente menos de 5% de nossa carteira e pretendemos elevar para 10% de participação até 2025.”

No Brasil desde 2017, a Gallagher, terceira maior corretora global de seguros corporativos, gestão de risco e consultoria em benefícios e uma das maiores resseguradoras com atuação do no mercado brasileiro, tem uma carteira de R$ 1,2 bilhão em prêmios. A meta é chegar a R$ 2 bilhões até 2025. Para alcançar esse objetivo a empresa adquiriu, em dezembro de 2021, as operações de corretagem de resseguros da Willis Towers Watson, por R$ 3,25 bilhões. A Willis Re opera em 24 países e tem em sua carteira pouco mais de 75 empresas de seguros e resseguros.

“O ano de 2021 foi de muitas novidades para a Gallagher e de crescimento. A compra da Willis nos levou a uma posição de destaque relevante, com um acréscimo em prémios de R$ 300 milhões a R$ 400 milhões para algo em torno de R$ 1,2 bilhão”, afirma Luiz Araripe, gerente-geral da Gallegher Brasil e CEO da Gallegher Re. Para o executivo, a MP 1.103 é interessante para o acesso das empresas seguradoras e resseguradoras a novos mercados, mas destaca que é importante entender quais os riscos passiveis desse tipo de instrumento.

“Esse modelo começou no mercado internacional como um novo capital, alternativo, entrando no mercado, voltado especialmente para grandes riscos, mas como no Brasil não temos riscos catastróficos, é preciso que fique claro que tipo de risco será atrelado a esse instrumento”, diz Araripe.

Para o IRB Brasil Re, o ano de 2021 foi marcado por um prejuízo de R$ 683 milhões, 54% inferior a perda registrada um ano antes, de R$ 1,482 bilhão. “Esperávamos que o ano de 2021 marcasse o fim do período de pandemia, com a retomada da economia e dos investimentos, mas isso não ocorreu de forma plena”, diz Raphael Carvalho, CEO da resseguradora. Um dos fatores que pesaram, segundo Carvalho, foi o aumento da sinistralidade. Em 2021, o sinistro total foi de R$ 5,988 bilhões, com um índice menor em relação a 2020, na faixa de 101,5%.

Segundo Araripe, o elevado volume de sinistro se deveu a dois fatores: aos contratos subscritos em períodos anteriores a 30 de junho de 2020, data em que a empresa iniciou o processo de ressubscrição, cujos sinistros representaram 75% do volume total registrado em 2021. O segundo diz respeito a alguns contratos vultosos que registraram sinistro acima do previsto. Apenas resultado da covid-19, o IRB registrou R$ 168 milhões de sinistros retidos. Com a conclusão do processo de ressubscrição, a empresa parte para a revisão de sua carteira.

“A recente evolução na regulamentação representa um passo fundamental para estabelecer o mercado de securitização de riscos de seguros no Brasil”, diz o executivo. Para Carvalho, a MP 1.103 permite ainda que o mercado de capitais ganhe uma opção para diversificar seu portfólio com riscos não relacionados a ativos financeiros e o mercado segurador ganha como aumento na oferta de capacidade e com oportunidades para novos produtos.

Uma das preocupações que estão no radar das resseguradoras são os efeitos da guerra na Ucrânia sobre o mercado ressegurador. “Eu diria que não tem um impacto no Brasil tão direto. O que poderemos ver é aquele que vem junto com a economia, nos seguros de produtos agrícolas. Com a alta no preço dos grãos, por exemplo, e das commodities, aumenta o seguro. Eu diria que um dos impactos é que a guerra tem ajudado a manter o mercado ‘duro’, com alta nos preços. Talvez, não fosse a guerra na Ucrânia, os preços começassem a baixar”, diz Freire, da Austral. Para o executivo, o prejuízo maior se dará no mercado externo.

O executivo da Gallagher destaca que o conflito na Ucrânia traz um impacto imensurável, em especial aos segmentos do mercado diretamente ligados a commodities. No setor de transporte, por exemplo, haverá uma perda de arrecadação para o Brasil, que é um parceiro comercial da Rússia. Além da possibilidade de financiamento via mercado de capitais, uma das grandes apostas de mudança no mercado ressegurador para 2022 diz respeito ao open insurance, ou sistema de seguro aberto, que permitirá o compartilhamento de dados das empresas seguradoras via sistema integrado. O objetivo é beneficiar os consumidores com maior transparência do mercado e coma possibilidade de dar acesso a um maior número de opções em relação aos produtos e serviços oferecidos.

Em relação ao open insurance, a posição das resseguradoras não é favorável. A primeira fase do sistema entrou em dezembro do ano passado. Agora, as seguradoras e resseguradoras têm até 30 de junho para concluir os requisitos exigidos pela Susep para o compartilhamento, que não agradou ao setor porque vai permitir que outras empresas tenham acesso a dados de clientes e empresas concorrentes. Para a Susep, o open insurance é um caminho sem volta, uma vez que beneficia diretamente o consumidor quanto a produtos com preços melhores.