Para advogados, relevância no STJ pode afetar uniformização de jurisprudência
O filtro de relevância no Superior Tribunal de Justiça (STJ), instituído pela Emenda Constitucional nº 125, poderá afetar a função de uniformizar a jurisprudência que se forma nos tribunais de 2ª instância. É a opinião de advogados consultados pelo JOTA, que acreditam que o fenômeno pode vir com a dificuldade de acesso à instância superior. Os efeitos práticos da norma, porém, dependerão de regulamentação legal, ainda inexistente.
Publicada no dia 15, a emenda determina que as partes do processo comprovem a relevância das questões em discussão para que o recurso ao STJ seja admitido e, por fim, julgado. O texto, no entanto, estabelece situações em que há presunção de relevância, que faz com que o recurso seja conhecido automaticamente. É o caso das ações penais e de improbidade administrativa, processos que possam gerar inelegibilidade ou que ultrapassem o valor de 500 salários-mínimos e hipóteses em que o acórdão recorrido contraria a jurisprudência do STJ. A norma também diz que outras hipóteses a serem previstas em lei podem entrar na lista.
A demonstração da relevância que passará a ser exigida se soma a outros requisitos de admissibilidade que já existiam e continuarão sendo aplicáveis. Entre eles está a necessidade de esgotamento das instâncias inferiores para recurso ao STJ e a observância à impossibilidade de reexame de fatos e provas pelo tribunal superior.
Uniformização
A maioria dos tributaristas consultados pelo JOTA acredita que a norma pode limitar o acesso ao STJ, afetando, com isso, a sua função de uniformização jurisprudencial. No entanto, outros acreditam que o papel da Corte permanece o mesmo.
“O problema, a meu ver, é o fato de que temos 27 Tribunais de Justiça e o STJ tem a essencial função de uniformizar a jurisprudência que se forma nesses tribunais. Isso não ocorrerá após a vivência dessa emenda”, diz o tributarista Gustavo Brigagão, sócio do Brigagão, Duque Estrada Advogados. Para ele, há risco de que, em caso de entendimentos distintos sobre a mesma questão pela segunda instância, o tema não chegue ao STJ.
Para Brigagão, a norma afeta a própria função dos recursos repetitivos, que têm a intenção de facilitar a uniformização fazendo com que o entendimento dado em um caso se aplique aos demais que tratem da mesma matéria. O advogado explica que isso acontece uma vez que a regra de relevância limitará a entrada de temas no tribunal, que não se tornarão repetitivos, fazendo com que a última instância seja, na prática, o tribunal que julgou ocaso. “Não haverá recurso. Muito menos recursos repetitivos”, diz.
Para Caio Cesar Nader Quintella, ex-vice-presidente da 1ª Seção do Carf, “é inquestionável que o STJ está sobrecarregado, mas a solução desse novo filtro recursal pode gerar uma limitação de acesso à instância especial e, principalmente, aumentar o regionalismo da jurisprudência sobre temas federais e nacionais”. Ou seja, cada estado irá ter um entendimento, uma vez que o STJ não “baterá o martelo” em algumas questões.
No mesmo sentido, advogado Pedro Grillo acredita que vão “ter situações que não se encaixam nessas hipóteses de relevância presumida, em que a jurisprudência dos tribunais inferiores vai estar com uma divergência em relação ao direito federal, e se você não conseguir levar isso ao STJ, não vai conseguir uniformizar a jurisprudência”, afirma.
No entanto, Camila Werneck, do Castro Barros Advogados, discorda. Para ela, a função do STJ de uniformizar a aplicação das normas federais permanece a mesma. “A diferença é que um novo requisito foi criado para que o STJ proceda à análise de admissão de recursos especiais. Ou seja, enquanto nas hipóteses elencadas haverá presunção de relevância, em outras hipóteses será necessário argumentar e demonstrar a relevância da questão de direito”, diz.
O texto inicial da proposta de emenda à constituição, oriunda do Senado Federal, contém em sua justificativa os problemas de congestionamento dos recursos especiais. A PEC da relevância, como foi chamada, foi inspirada na repercussão geral no STF, instituída sob os mesmos argumentos. Após a aplicação do método no Supremo, em 2007, o número de processos no estoque saiu de 159 mil para 38 mil, em 2021, conforme justificativa da proposta. Além disso, o filtro de relevância é bem visto pelos ministros do STJ.
“Acotovelam-se no STJ diversas questões de índole corriqueira, como multas por infração de trânsito, cortes no fornecimento de energia elétrica, de água, de telefone. Ademais, questões, inclusive já deveras e repetidamente enfrentadas pelo STJ”, diz o texto, na sua justificativa.
Atualmente, tramitam 296.224 processos no tribunal, de acordo com o STJ.Com o filtro de relevância, a expectativa é que a emenda alivie o estoque de recursos, na medida em que permitirá uma “atuação mais célere e eficiente às importantes questões de direito federal que o tribunal analisa”, diz o texto de apresentação da PEC.
Apesar da discussão, a regra não deve ser aplicada ainda. Procurada pelo JOTA, a assessoria de imprensa do STJ afirmou que o texto possui eficácia limitada e que seus efeitos práticos só passarão a valer quando houver uma regulamentação.
Repercussão Geral no STF
O ano de 2007 foi marcado pela implementação da Repercussão Geral no Supremo Tribunal Federal (STF). Assim como a relevância no STJ, a repercussão geral é um procedimento de admissibilidade, ou seja, que estabelece critérios para conhecimento do recurso. Para que a repercussão geral seja reconhecida, é necessário que se evidencie a relevância do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico. Caso contrário, o recurso não é conhecido, salvo alguns casos específicos.
Com a implementação do procedimento, conforme levantamento do próprio STF, os processos em tramitação no tribunal diminuíram cerca de 80% em 14anos. No entanto, em um artigo publicado no JOTA em 2018, intitulado “Balanço de dez anos da repercussão geral”, o ministro Luís Roberto Barroso defendeu que os efeitos positivos da regra são ilusórios.
“A repercussão geral é um filtro de relevância que não tem impedido achegada de 100 mil casos por ano ao STF, nem desobrigado a Corte de proferir aproximadamente o mesmo número de decisões no mesmo intervalo.
O alívio de processos verificado até 2011 foi temporário e ilusório: a diminuição dos feitos remetidos ao STF não significa que eles tenham deixado de existir, mas apenas que continuam aguardando julgamento em algum escaninho, ainda que virtual, longe da Praça dos Três Poderes. É inegável, portanto, que a sistemática, tal como praticada até hoje, fracassou”, escreveu.
Nesse sentido, Gustavo Brigagão afirma que “parece que medidas como essa acabam só diminuindo o acesso do jurisdicionado aos tribunais superiores”.