Petróleo e Gás, Energia e Mineração

Salto nos preços do diesel agrava cenário

Pressionados pelo aumento de custos, transportadores autônomos recusam fretes de baixo valor

O setor de transporte de cargas rodoviárias foi duramente afetado pela mudança no cenário desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro. E ainda não havia se recuperado da recessão de meados da década passada e da pandemia. No fim de 2021, a Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA) lançou a campanha Esse Frete Não! para estimular caminhoneiros a recusar fretes de baixo valor, recorrendo ao personagem Zé Traíra, simbolizando “aquele que passa a perna nos demais”, segundo Marlon Maues, assessor-executivo da presidência da entidade.

A situação já era considerada crítica para os autônomos, mesmo antes do “superaumento” do diesel em março deste ano, decorrente da escalada dos preços do petróleo na sequência da guerra. “O valor do frete é negociado corporativamente entre embarcadores (donos da carga) e transportadoras e imposto aos caminhoneiros autônomos. Sem conseguir repassar aumentos, a situação se agrava e muitos têm parado de rodar, porque o frete deixou de cobrir custos”, diz Maues.

Segundo ele, alguns segmentos têm conseguido melhor desempenho em função de características específicas, a exemplo dos “tanqueiros”, que transportam combustíveis, e dos que trabalham no transporte de grãos, que conseguiram consolidar “melhor posição de negociação”. Mas mesmo “entre os melhores”, diz Maues, “aqueles que não se prepararam para atender ao mercado foram mais sacrificados”. De forma geral, a CNTA entende que a forte alta do diesel fez escalar a insatisfação entre os autônomos e reforçou a necessidade de “recomposição dos valores dos fretes do caminhoneiro para que se atenuem os desequilíbrios financeiros entre contratados e contratantes”.

Também a Confederação Nacional do Transporte (CNT) defende a recomposição dos preços do frete rodoviário, de forma a preservar a saúde financeira do setor e “evitar o colapso de inúmeras empresas transportadoras”. Conforme Vander Costa, presidente da CNT, “a operação de transporte no Brasil corre risco de se tornar inviável”. Ele acrescenta que o setor não vinha conseguindo repassar sequer os aumentos que vêm ocorrendo em cascata desde 2021, comprometendo a geração de caixa e as margens do setor, estimadas entre 5% e 6% com base em dados dos balanços das transportadoras.

Para Costa, num setor que reúne em torno de 250 mil transportadoras de carga, a guerra deixou todos apreensivos em relação ao que pode acontecer neste ano. “Aquelas que trabalham com frota própria têm maior flexibilidade na gestão dos veículos e na negociação com fornecedores de combustíveis. Mas, no caso das empresas que operam com frota terceirizada, o impacto do salto nos custos é imediato.” Planos de investimento, para aquelas transportadoras que pensavam em investir, foram suspensos e hoje “toda a torcida é pelo reestabelecimento da paz”.

A expectativa do setor para 2022 já não era muito positiva antes do conflito no Leste Europeu. Segundo pesquisa realizada no começo do ano pela Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC&Logística), diz Lauro Valdívia, assessor técnico da entidade, apenas 35% das transportadoras ouvidas aguardavam uma melhora no mercado doméstico neste ano ante cerca de 50% na edição anterior da pesquisa, realizada na passagem de 2020 para 2021. “Quem achava que a situação iria piorar passou a representar 35% das respostas, saindo de 20% antes.”

A alta de 24,9%, anunciada em março para os preços do diesel colocado nas distribuidoras pela Petrobras, reforçou o desânimo num cenário de custos em elevação e veio num momento em que as transportadoras tentavam negociar o repasse para os preços do frete do aumento de quase 50% acumulado pelo combustível entre janeiro do ano passado e fevereiro deste ano.

De acordo com Valdívia, os custos atingiram recordes de alta, subindo 18,58% nos 12 meses encerrados em janeiro deste ano para o transporte de cargas fracionadas, com salto de 27,65% registrado no segmento de carga-lotação, num cálculo que inclui, entre outros, combustíveis e demais insumos, manutenção de veículos e mão de obra. Com o aumento no início de março, a NTC&Logística estimava a necessidade de uma correção adicional no preço do frete de 8,75%, o que elevaria os custos das cargas fracionadas e lotação, respectivamente em 28,96% e 38,82%.

Em média, os preços do diesel respondem por cerca de 35% dos custos totais, podendo atingir até 50% em alguns casos. Como sugestão, a entidade tem recomendado às transportadoras que negociem a inclusão de gatilhos baseados na variação do diesel, seja em contratos já firmados, seja em novos contratos. O setor, lembra Valdívia, passou por um processo de adequação forçada desde a crise de 2014/2016, ajustando margens e custos, durante o qual algumas empresas acabaram ficando pelo caminho.

O transporte rodoviário vinha tentando se recuperar quando sobrevieram a pandemia e, na sequência, o conflito entre Ucrânia e Rússia. “A maioria das empresas não tem mais espaço para redução de margens e terá que repassar os aumentos de custo”, diz Valdívia. A questão, prossegue ele, é que os valores do frete rodoviário continuam “muito aquém do que deveriam, a ponto de concorrer com o ferroviário, o que é um grande problema”.

Liderado pelo e-commerce, que decolou durante a pandemia, favorecendo o transporte de cargas fracionadas, o setor como um todo chegou a apresentar desempenho positivo durante a primeira metade de 2021, mas “voltou a enfrentar um período de maior sofrimento no segundo semestre”. Segundo Valdívia, boa parte das empresas conseguiu retomar níveis anteriores à pandemia, mas o setor como um todo não voltou aos volumes anteriores à recessão. No caso do setor de cimento, que chegou a movimentar 100 milhões de toneladas por ano, segundo ele, houve alguma recuperação a partir de 2018/2019, mas a movimentação continuava inferior a 50 milhões de toneladas.

Bruno Hacad, diretor de operações da Fretebras, considerada a maior plataforma on-line de transporte de cargas da América do Sul, reforça que embarcadores e transportadoras também enfrentam dificuldades para repassar os aumentos recentes de custos. O salto no diesel, de qualquer forma, “atinge o caminhoneiro na veia”, ressalta. Até porque todos os custos subiram no último ano, com aumentos em média de 40% no caso dos caminhões, de 30% para os pneus e perto de 25% para a manutenção dos veículos. “Só o valor do frete não aumentou e começamos a ver muito caminhoneiro desistindo da profissão.”

Com uma base em torno 600 mil caminhoneiros, Hacad relata que 60% das reclamações registradas na plataforma desenvolvida pela Fretebras estão relacionadas aos preços do frete. A expectativa até antes da guerra, relembra ele, era de uma acomodação nos preços do diesel. Mas tudo ficou mais incerto e imprevisível. Em 2021, a Fretebras, por meio de sua plataforma digital, gerou mais de oito milhões de fretes, crescendo 38% em relação a 2020, e a meta, fixada antes do conflito, era de um crescimento de quase 50% para este ano. Ainda em 2021, o avanço havia sido mais intenso no agronegócio, que responde por 37% dos fretes e registrou alta de 47%, puxada pelo frete de fertilizantes.

No setor da construção, o volume de fretes aumentou 45%, sob influência do cimento, que responde por 46% do frete contratado. O transporte de produtos industrializados, com participação de 28% na plataforma, havia acumulado elevação de 31%, concentrado em máquinas e equipamentos pesados, afirma Hacad.

Uma política macroeconômica mais estável teria impactos mais positivos sobre os preços dos combustíveis, diesel incluído, e sobre a economia do que “qualquer medida compensatória e mesmo do que alterações na política de paridade internacional da Petrobras”, avalia Ludmilla Franklin Corkey, sócia do escritório Castro Barros Advogados. Ela antecipa uma fase de grandes incertezas, agravadas pelo conflito na Ucrânia lá fora e pelo período eleitoral aqui dentro, o que torna arriscado qualquer tipo de previsão em relação à economia global em geral, particularmente ante o mercado de petróleo, e portanto aos custos de transporte no mercado interno.

Citando dados do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), Ludmilla reforça seus argumentos, mostrando que, entre 24 de outubro de 2018 e 31 de dezembro de 2021, o barril do Brent manteve-se praticamente estável, na faixa de US$ 77, enquanto o câmbio experimentou alta de 50,4%, fazendo com que os preços do barril em reais subissem quase 38%. “O país tem que tomar conta de sua política interna para conseguir mais estabilidade nesta área e nos demais setores da economia.” Os custos de transporte poderiam ser mais favoráveis, diz ela, se o país “injetasse os recursos dos royalties do petróleo e das participações especiais em projetos de infraestrutura importantes para o setor, melhorando sua qualidade”.

Líder de mercado no país, a multinacional brasileira Asia Shipping antecipa uma demanda mais deprimida para este ano no mercado doméstico, o que deverá direcionar a movimentação de cargas ao longo do período, afirma Rafael Dantas, diretor comercial da empresa. O conflito entre Rússia e Ucrânia, no entanto, tende a gerar oportunidades de crescimento nas exportações. “O Brasil poderá se consolidar como fornecedor relevante em alguns segmentos de mercado como reflexo das sanções econômicas e comerciais impostas aos russos e da elevação nos preços das commodities”, avalia ele, referindo-se ao comércio de milho, grãos em geral e madeira, setor que já vinha experimentando algum aquecimento.

Os gargalos no setor de transporte marítimo desde a pandemia, que produziu escassez de contêineres, agravada desde o começo do conflito no Leste Europeu, fizeram disparar os fretes marítimos desde 2021. Saindo de navio do Brasil com destino aos países das Américas, diz Dantas, o frete saltou de perto de US$ 1,5 mil para US$ 9 mil por contêiner transportado entre o Brasil e as Américas, enquanto o frete rodoviário no porto de Itaguaí avançou de R$ 1,2 mil para R$ 1,5 mil. No ano passado, a Asia Shipping bateu seu próprio recorde, movimentando quase 421,97 mil TEUs (Twenty Foot Equivalent Unit, unidade utilizada para aferir a movimentação de contêineres), consolidando a 33ª posição no ranking global de movimentação de cargas marítimas, única operadora brasileira listada entre as 50 maiores do mundo.

https://valor.globo.com/empresas/noticia/2022/03/31/salto-nos-precos-do-diesel-agrava-cenario.ghtml