Direito Público, Infraestrutura e Regulatório
Broadcast Energia

A análise de risco no novo marco legal do gás

Há uma grande expectativa no setor para que o novo marco legal do gás seja sancionado e transformado em lei. Um dos pontos de destaque – e que será objeto deste artigo – diz respeito à previsão de que o transporte de gás natural, o que inclui a construção, ampliação, operação e manutenção das instalações – hoje controlado em sua totalidade pela Petrobras -, poderá ser explorado por meio de uma autorização a ser expedida pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

A mudança é importante porque hoje a previsão que vigora, por meio da Lei 11.909/09, é que o transporte poderá ser explorado pela iniciativa privada, mas por meio de concessão. Não deixa de ser curioso que umas das justificativas para essa alteração é a mesma utilizada quando a Lei 11.909/09 estava sendo discutida, qual seja, a de destravar os investimentos privados no setor.

Infelizmente as expectativas não corresponderam à dura realidade e, em mais de uma década de vigência da Lei 11.909/09, nenhuma concessão foi realizada. A bola da vez para solucionar o problema é o instituto da autorização. Segundo foi propagado ao longo da discussão da nova lei, este é o modelo mais difundido no mundo e por conta disso aumentaria o apelo para investimentos de atores deste mercado aqui no Brasil. A esperança é que isso se concretize, mas é importante saber que, novamente, a realidade brasileira não deve ser ignorada, afinal o modelo de autorização aqui no Brasil tem suas particularidades. Dessa forma a análise de risco, que já é crucial em qualquer projeto de infraestrutura, deverá ser ainda mais consistente no promissor mercado de gás natural. Neste contexto destacamos abaixo alguns pontos que entendemos que devem chamar a atenção de potenciais investidores.

Em primeiro lugar, é importante ter em mente que, em regra, a autorização é um ato administrativo precário, unilateral e discricionário. Unilateral porque a autorização será concedida pela ANP e discricionário porque cabe a ela decidir se a solicitação de autorização deve ou não ser aprovada, não bastando a empresa que busca a autorização tenha todas as qualificações necessárias para tanto. No mais, ser precário não significa que possa ser revogado a qualquer tempo e sem um determinado procedimento, mas certamente pode ser mais rápido que a extinção de uma concessão, por exemplo.

De todo modo, o legislador do novo marco legal do gás pareceu ter isso em mente e estipulou em seu artigo 10 que a autorização somente será revogada após o devido processo legal e assegurado o contraditório e estipulou, ainda, as hipóteses em que isso seria possível, quais sejam: (i) liquidação ou falência; (ii) requerimento da empresa autorizada; (iii) desativação completa e definitiva das instalação de transporte; (iv) descumprimento, de forma grave, da lei, das regulações aplicáveis e dos contratos de serviços de transporte; e (v) na inobservância de independência e autonomia estabelecidos na lei e nas regulações aplicáveis. Os itens (iv) e (v) são os que ainda dependerão da regulamentação do setor e serão cruciais para que o risco seja mensurado de forma adequada.

Além disso, a nova lei procurou afastar qualquer conotação de se tratar de um serviço público, o fazendo inclusive de forma expressa, o que diminuiria eventuais interferências na forma que se vai prestar o serviço. A intenção parece ser boa, mas será crucial saber como isso se dará na prática já que a própria lei determina que a ANP é que estipulará a receita máxima permitida, bem como os critérios de reajuste, revisão periódica e de revisão extraordinária.

Como isso será regulamentado a lei deixou em aberto, mas o fato é que a relação com o usuário final – que neste caso é primordialmente a indústria e não o consumidor doméstico como erroneamente se tem propagado – ainda está em aberto e, para o bem e para o mal, se dará entre privados. O risco do negócio, portanto, é exclusivo daquele que obtiver a autorização – o que, aliás, está expresso no artigo 1º, §2º da Lei – e estará sujeito à grande volatilidade do mercado e, no caso do Brasil, às flutuações cambiais que sempre acabam influenciando no resultado das empresas.

Assim, o papel da ANP será crucial para que a relação entre os diversos atores da cadeia do gás natural seja realizada de forma a aumentar a oferta do produto e não tornar um tormento por quem dele se utilizar. Além disso, ainda dentro deste contexto, é importante que os investidores tenham em mente que não haveria possibilidade, pelo menos não estabelecido em lei, de um reequilibro econômico-financeiro tal qual existe em contratos de concessão, inexistindo, inclusive a possibilidade de compartilhamento de riscos.

Outro ponto que chama a atenção é que, apesar de adotar um regime de autorização, o novo marco legal prevê que a cisão, fusão, transformação, incorporação, redução de capital ou a transferência do controle societário da empresa autorizatária deverá ser previamente autorizado pela ANP. Esse tipo de exigência faz sentido em um contrato de concessão, já que as empresas devem manter ao longo de toda a execução do contrato as mesmas qualificações técnicas, jurídicas e econômico-financeira quando da assinatura do contrato.

No caso das autorizações, a não ser em casos de transferência da autorização em si, parece ser uma interferência desnecessária nas empresas que se propõem a explorar tal mercado, já que, como dito acima, o resultado do empreendimento é por sua conta e risco. Ademais, no mais das vezes as empresas que atuam no setor possuem estrutura societárias complexas que podem não estar dispostas a permitir esse tipo de ingerência para desempenhar um serviço que a própria lei define como não sendo de natureza pública.

Há, portanto, uma certa contradição entre o discurso de desburocratização do setor e aquilo que foi previsto em lei. Outro elemento que deve ser levando em consideração pela mudança de regime adotada é que não há bens reversíveis, o que significa dizer que, em tese, caso a autorização seja revogada, a empresa não faria jus a qualquer tipo de indenização caso os investimentos não tenham sido amortizados.

Dito tudo isso, sem prejuízo de outros elementos que possa surgir ao longo da execução de contratos dessa natureza, para se aventurar nesse tipo de empreendimento os potenciais interessados terão que fazer uma análise de risco pormenorizada e muito criteriosa. No mais, para que se evite um novo desfecho tal qual do atual regime, é preciso que as condições sejam definidas da forma mais clara possível e a regulamentação do setor, em especial o papel da ANP, seja rapidamente definida.

*Paulo Henrique Spirandeli Dantas, advogado especializado em Infraestrutura e Direito Administrativo e sócio do escritório Castro Barros Advogados. Escreve periodicamente para a Coluna Legal, do Broadcast Energia.