Govtech e incentivo às compras públicas
As inovações tecnológicas decorrentes de produtos manufaturados e serviços produzidos e/ou realizados no Brasil foram contempladas com importante incentivo no âmbito das compras públicas.
O Decreto nº 11.890/2024, recém-publicado e que regulamenta o artigo 26 da Lei nº 14.133/2021 (“Nova Lei de Licitações”), dispõe sobre a aplicação da margem de preferência no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, além de instituir a Comissão Interministerial de Contratações Públicas para o Desenvolvimento Sustentável.
O decreto, além de estabelecer a margem de preferência normal para produtos e serviços nacionais em relação aos equivalentes estrangeiros, estabeleceu uma margem de preferência adicional para produtos manufaturados e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no país.
O decreto determina ainda que as margens de preferência normal e adicional são cumulativas, logo, com isso, esses produtos e serviços poderão ser objeto de uma margem de preferência de até 20% em relação a produtos e serviços estrangeiros.
Além das margens de preferência, o decreto instituiu a Comissão Interministerial de Contratações Públicas para o Desenvolvimento Sustentável (CICS), uma unidade de governança no âmbito das contratações públicas para questões como medidas de compensação comercial, industrial ou tecnológica, diálogo competitivo e concursos para solução inovadora.
À CICS competirá, dentre outros, estabelecer critérios e elaborar proposições normativas para a aplicação de margens de preferência normais e adicionais e de instrumentos e políticas de fomento à inovação e ao desenvolvimento sustentável e inclusivo por meio de contratações públicas.
Com essas medidas, o Decreto nº 11.890/2024 está inserido no contexto da crescente tendência de instrumentalização da contratação pública como elemento de orientação de mercado e de fomento ao desenvolvimento de novos produtos ou serviços inovadores.
Isto é, com medidas como as estabelecidas pelo decreto, as compras públicas deixam de ser um simples meio para satisfação imediata de uma necessidade da Administração Pública, mediante a contratação de um bem ou serviço, e passam a servir também a uma finalidade secundária, que supera o âmbito da contratação em si, para que o poder de compra do Estado passe a ser utilizado no âmbito da concretização de políticas públicas.
Nesse sentido, vale mencionar que a própria Nova Lei de Licitações está diretamente inserida nesse contexto ao, por exemplo, estabelecer o incentivo à inovação como um dos objetivos do processo licitatório e admitir que os Procedimentos de Manifestação de Interesse (PMIs) fossem restritos a startups.
Além da Nova Lei de Licitações, é possível mencionar outras leis inseridas nesse contexto, com destaque para: (i) a Lei nº 10.973, alterada pela Lei nº 13.243/2016, que prevê a Encomenda Tecnológica e o uso do poder de compra do Estado como instrumentos de estímulo à inovação; (ii) a Lei nº 14.129/2021, a Lei do Governo Digital, que busca a digitalização, desburocratização e simplificação da gestão administrativa, dos processos administrativos e dos serviços públicos por meio da inovação e uso de tecnologia, e institui os Laboratórios de Inovação para a promoção e experimentação de tecnologias abertas e livres, para o incentivo à inovação e o apoio ao empreendedorismo inovador e para o fomento a ecossistema de inovação tecnológica direcionado ao setor público; e (iii) a Lei Complementar nº 182/2021, o Marco Legal das Startups, que instituiu uma modalidade especial de licitação para a contratação de teste de soluções inovadoras e o chamado Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI).
As referidas leis ganham especial relevância quando considerado que, no Brasil, as compras governamentais representam cerca de 12% do PIB nacional. Segundo dados do Painel de Compras, ferramenta de transparência do Governo Federal, o valor estimado das compras realizadas apenas na esfera federal em 2023 foi de mais de R$ 160 bilhões.
É nesse contexto que o chamado ecossistema GovTech, no qual os governos colaboram com as startups e outros atores que usam inteligência de dados, tecnologias digitais e metodologias inovadoras para entregar produtos e serviços voltados para a solução de problemas públicos, vem ganhando força no Brasil, na mesma esteira do que vem ocorrendo no mundo todo.
Isso porque, o resultado dessas medidas no ecossistema GovTech já pode ser verificado em relatórios e estudos recentes, a exemplo do “GovTech Maturity Index”, elaborado pelo Banco Mundial em 2022, no qual o Brasil foi classificado no grupo “GovTech Leaders”, composto pelos países com o índice mais alto de maturidade do ecossistema GovTech, a partir da mensuração de 48 indicadores para avaliar aspectos críticos do desenvolvimento desse ecossistema.
Assim, a recente regulamentação Nova Lei de Licitações, somada a todas as outras iniciativas mencionadas que viabilizam a instrumentalização das compras públicas para o fomento à inovação, são importantes marcos no fortalecimento do ecossistema GovTech no Brasil e demonstram o reconhecimento por parte do Estado da relevância e essencialidade das parcerias com o setor privado no desenvolvimento de novas tecnologias para aprimorar o modernizar os serviços públicos e suas demais atividades.
Paulo Henrique Dantas e Rebeca Spuch são, respectivamente, sócio e advogada do escritório Castro Barros Advogados, ambos especializados em Direito Administrativo e Infraestrutura
https://valor.globo.com/legislacao/coluna/govtech-e-incentivo-as-compras-publicas.ghtml