Direito Público, Infraestrutura e Regulatório
Valor - Setorial Infraestrutura e Logística

Nem tudo é sucesso nesse modelo

Para darem certo, parcerias precisam de contratos claros para evitar conflitos. Dados mostram que, de cada cinco propostas, apenas uma se concretiza

Saudadas inicialmente como uma solução capaz de viabilizar a execução de qualquer obra pública, as parcerias Público–Privadas (PPPs) têm exigido uma atenção cada vez maior dos sócios envolvidos para se consolidarem ao longo do tempo. “Cada contrato precisa ser muito bem avaliado, tanto pelo ente público como pelo investidor privado, para evitar conflitos e a consequente judicialização dos processos. É importante notar também que cada obra feita em parceria tem suas próprias especificidades, como um filho único. Não há uma receita que sirva para todos”, diz o advogado Daniel Gabrilli, do escritório Orizzo Marques.

O desencontro de interesses – e de contas –  é apontado pelo mercado como o fator responsável pelo alto índice de PPPs que não se viabilizam. De acordo coma consultoria Radar PPP, que no início de outubro acompanhava de perto a evolução demais de 3,3 mil projetos com esse modelo de parceria no país, apenas uma entre cinco dessas propostas acaba se concretizando.

“O grande obstáculo é a insegurança do investidor privado em relação ao cumprimento do contrato por parte do representante do município, Estado ou governo federal. A União, principalmente, é um mau pagador, como se sabe, recorrendo muitas vezes a títulos precatórios”, afirma o advogado Giuseppe Giamundo Neto. Para se prevenir desse tipo de pagamento espúrio e até mesmo de possíveis calotes, ele aconselha os sócios privados a colocarem em contrato uma série de garantias, como um fundo garantidor de crédito, que nem sempre o ente público pode fazer ou tem interesse de aceitar. A cautela ainda se justifica pelos costumeiros prazos longos de vigência das PPPs, de 30 ou até 35 anos.

Apesar dessas dificuldades, as PPPs em estudo aumentaram significativamente neste ano, embaladas pela possibilidade de prefeituras — especialmente as de menor porte, com poucos recursos — se consorciarem para expandir suas redes de água e esgoto com a participação da iniciativa privada, como prevê o novo marco legal do saneamento básico, recentemente aprovado. A media mensal de PPPs lançadas em 2020 foi de 44, segundo a Radar PPP, enquanto nos primeiros nove meses deste ano chegou a 61 – em 2019, antes da pandemia, foi de 54. Em setembro, por exemplo, 60 novos projetos foram inseridos no cadastro da consultoria, 15 (não necessariamente desse grupo) alcançaram a fase de consulta pública e 31 licitações foram iniciadas. Nesse mesmo período, 21 licitações foram canceladas e outras 14, adiadas ou suspensas. É um universo dinâmico. Criadas em 2004, as PPPs ganharam destaque nos anos que antecederam a Olímpíada do Rio de Janeiro, em 20l6, para tirar do papel obras estruturais como o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), que liga a área portuária da capital fluminense ao aeroporto Santos Dumont e ao centro financeiro da cidade. Inaugurado dois meses antes dos jogos, o VLT desde então consumiu RS1,69 bilhão de subvenções da prefeitura carioca e deve receber mais R$ 1,04 bilhão nos próximos quatro anos. “Essa é uma diferença primordial entre uma PPP e uma concessão de bem público. Enquanto na concessão o investidor é remunerado pela tarifa paga pelo usuário, na PPP o ente público se responsabiliza por uma parte da manutenção da obra, com o subsídio parcial dessa tarifa”, explica Rafael Zinato, do escritório Almeida Advogados. “HáPPPs ainda que são inteiramente patrocinadas pelo governo, nas quais as empresas privadas participam apenas como prestadoras de serviço na construção ou na operação da obra. São as chamadas PPPs administrativas, como as formadas para a construção de presídios e aterros sanitários, por exemplo”, acrescenta.

O advogado Paulo Dantas, do escritório Castro Barros, nota que as PPPs envolvem muito mais detalhes e contrapartidas do que as concessões pura e simples e, por isso, enfrentam mais dificuldades para se consolidarem. “As concessões evoluíram muito bem no Brasil, são responsáveis por São Paulo ter as melhores rodovias do pais, por exemplo. Com uma ou duas exceções, os aeroportos também prestam um serviço melhor depois de concedidos. Já com as PPPs, tudo é mais difícil. Por isso muitas não se concretizam ou são interrompidas por litígios”, afirma.

As PPPs consolidadas envolvem, em sua maioria, projetos municipais relativamente simples e de baixo custo, como os de iluminação pública, construção de escolas, extensão de redes de esgoto e terminais rodoviários. As que exigem maiores volumes de investimento geralmente são projetos que atendem o transporte urbano em grandes cidades, como no caso do carioca e da Linha 4-Amarela do metrô de São Paulo, que faz um percurso de 11 quilômetros entre os bairros da Luz e do Butantã.

Quanto maior o investimento, mais meticuloso precisa ser o contrato, alertam os consultores jurídicos. “O planejamento deve cobrir todas as possibilidades para não prejudicar uma das partes e, com isso, comprometer o andamento do projeto, destaca Giuseppe Giamundo, cujo escritório representa a construtora OAS na malograda PPP para a universalização das redes de água e esgoto do município de Guarulhos, na área metropolitana de São Paulo. “Quando mudou a administração municipal, em 2014, o contrato foi questionado pela prefeitura e acabou na Justiça. Já ganhamos o processo em duas instâncias, mas a indenização para a construtora ainda não saiu”, relata. De acordo com Giamundo, o valor corrigido da indenização deve superar R$ 1 bilhão.

Mesmo a construção da Linha Amarela do metrô paulistano, sempre citada como exemplo de PPP que deu certo, enfrentou problemas durante a execução, com atrasos na entrega de estações por parte do governo paulista, que levaram a operadora ViaQuatro, liderada pelo grupo CCR, a exigir a indenização prevista em contrato. Só agora, 11 anos depois da inauguração da obra, foi definido o pagamento de cerca de pouco mais de R$ 1 bilhão à concessionária, o que deverá ser feito em prestações até 2037.

O contrato da Linha Amarela previa que a infraestrutura seria de total responsabilidade do governo estadual, enquanto o sócio privado se encarregaria dos trens, da sinalização e da operação. Com o atraso na constrição das estações, a concessionária alegou ter sido obrigada a comprar trens novos e fazer reparos de manutenção, gerando despesas não previstas. Essas dificuldades de percurso, em todo caso, não impediram que a Linha Amarela fosse escolhida, em 2013, como a melhor PPP da América Latina e Caribe pelo International Finance Corporation (IFC), entidade financeira ligada ao Banco Mundial (Bird).

Primeira PPP no segmento metroviário do pais, a linha Amarela paulistana também inspirou o governo baiano a investir numa nova parceria em 2014 para destravar as obras do metrô de Salvador, que estavam há anos paralisadas por conflitos entre a concessionária e o ente público, além de greves, suspeitas de superfaturamento e indefinições judiciais. Quatro anos depois, as Linhas 1 e 2 do metrô soteropolitano, com 33 quilômetros de extensão e 20 estações no total, foram finalmente inauguradas, criando outro case de PPP de sucesso.

O fiasco de uma PPP pode acontecer por motivos diversos, incluindo o envolvimento de empresas participantes em denúncias de corrupção não relacionadas ao projeto. Foi o que ocorreu com a Linha 6-Laranja do metrô de SãoPaulo, na qual o governo estadual atuava em parceria com as construtoras Odebrecht, Queiroz Galvão e UTC- que subitamente passaram a ser investigadas pela Operação Lava-jato. Sem credito na praça, a concessionária formada pelas empresas entregou apenas 15% da obra, que acabou suspensa e teve o contrato rompido em 2016.

No fim do ano passado, as obras da Linha Laranja foram retomadas, também em formato de PPP, desta vez com a participação da construtora espanhola Acciona. Com 15,3 quilômetros de extensão entre os bairros da Brasilândia e Liberdade, a linha tem previsão de entrega em 2025 e está orçada em R$ 15 bilhões — é o maior projeto do Pró-SP, o pacote de obras de R$ 47,5 bilhões anunciado recentemente pelo governo estadual. Das oito mil obras que fazem parte desse programa, muitas já estão contratadas e em andamento — ou seja, não são novidade, mas foram contabilizadas pelo govemador João Doria(PSDB), pré-candidato à Presidência da República, para causar um impacto ainda maior.

Outra obra de destaque do Pró-SP é o Trem Intercidades (TIC), ligando a capital paulista a Campinas, um projeto que há décadas é cogitado por sucessivas administrações estaduais, sem sair do papel. Orçado em US$ 1,4 bilhão, o trecho ferroviário pode ser implantado em formato de PPP, principalmente se for incluído como contrapartida da renovação antecipada da concessão da ferrovia de carga entre Jundiaí e Santos, operada pela concessionária MRS Logística. Como a renovação desse contrato segue em análise no Tribunal de Contas da União(TCU), a consulta pública do TIC, que era para acontecer no terceiro trimestre deste ano, foi adiada para 2022.